- Por que é importante indagar sobre o exercício de atos de competência dos Poderes:
Recentemente o Presidente da República fez desfilar em frente ao Palácio do Planalto militares em formação de combate, com tanques de guerra e outros aparatos militares. O fato gerou grande furor nas mídias e, obviamente, nas redes sociais.

tanques – https://br.depositphotos.com/stock-photos/tanques-de-guerra.html?filter=all&qview=74504449
Os grupos de whatsapp da família ficaram lotados e em poucos minutos foi possível observar que as mensagens já chegavam com aquele recadinho do aplicativo de “encaminhado com frequência”. Bom, daí já dá para perceber que alguma coisa tem.
Se você, assim como eu, tem amigos, familiares e conhecidos que enxergam e acompanham a política com paixão (ou seja, com o coração e não com o cérebro), pode perceber que as reações foram em dois extremos. Os apoiadores do Presidente tiveram o seu momento de elogiosa manifestação acerca da presença de membros das forças armadas em Brasília, até porque é um assunto recorrente no seu meio.
Houve parlamentar até que ficou tão emocionado que publicou imagem de um desfile na China para se referir ao seu emocionado pulular cardíaco com a presença verde-oliva nestas terras desbravadas por Caramuru.
Por outro lado, os críticos do Presidente prestaram mais atenção na (má) qualidade do aparato militar apresentado (e que recentemente colocou em disponibilidade para combate contra os filhos do Tio Sam) e na crítica às possíveis intenções daquele ato. O primeiro caso foi motivo para inúmeros memes na internet, que é o ápice do sucesso que um ser humano pode alcançar nesta terça parte do sec. XXI (vai que um dia eu viro meme também).
O segundo caso foi mais sério e voltado para a discussão do fato de que o tal desfile se deu exatamente no dia em que a Câmara dos Deputados votaria a PEC do voto impresso e isso soou como uma ameaça ao Congresso. Essa foi a conclusão de alguns. Não de todos, mas da maioria dos críticos do governo.
A pergunta que fica é: o Presidente pode convocar as forças armadas para dar uma acelerada nos brinquedos bélicos pelas ruas para entregar cartas e convites ou apenas para desenferrujar as engrenagens e gerar algum entretenimento? Sim. Pode. Ele é o comandante supremo das forças armadas (esse nome brega não é culpa minha, está escrito desse jeito no art. 84, XIII, da Constituição).
E por que então esse falatório se ele não fez nada além do que a liturgia do cargo lhe autoriza? Porque é preciso perceber que, como nos lembra Marcelo Camelo, “a estrada vai além do que se vê”. E é aí que entra a diferença entre o que foi feito e que se pretendia com o que foi feito. A linha é tênue, mas vale o esforço.
- O poder do símbolo
Se você voltar nas suas entusiasmadas aulas de História da 6ª série, vai se lembrar do assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, ocorrido em 28 de junho de 1914. Esse episódio é o marco do início da Primeira Guerra Mundial.
Eu não sei quanto a você, mas eu sempre fui fascinado por História e cada aula que assistia me sentia um pouco mais informado e um pouco mais burro. Esse efeito é relativamente compreensível, dado que a gente vai percebendo que tudo tem uma conexão e é impossível entender o presente sem entender o passado.
O problema é que eu demorei muito para começar a entender metáforas (na verdade, até hoje é um desafio, dada a literalidade de raciocínio que me acompanha). Por causa disso, eu não conseguia entender porque a morte de um nobre Austríaco, por causa de uma briga interna entre sérvios, croatas e bósnios, no território meio esquecido do que seria a Iugoslávia, poderia gerar uma Guerra Mundial.
Dá para perceber que a conta não fecha? Anos depois, em 22 de novembro de 1963, também morreu por atentado o Presidente dos EUA John Kennedy e ninguém pensou em guerra por isso. Seja compreensivo comigo e com a minha mente aos 11 anos de idade: não é possível que os EUA não sejam mais importantes do que a Iugoslávia para o mundo???
O que eu não entendia à época era o poder do símbolo. A morte de Ferdinando não foi apenas uma morte, foi uma morte com um significante diverso do significado. O significante era que um nobre foi morto. O significado era a afronta às fronteiras, o desequilíbrio de forças em jogo, o uso da morte para ultrapassar linhas antes respeitadas e a sua hiperbolização para aumentar o poder de algumas pessoas interessadas em território, influência, mercados e mais poder.
Ferdinando, na prática, era insignificante, mas cheio de significados. Valeu muito mais morto do que vivo. E daí a gente começa a perceber porque atos simbólicos as vezes são muito mais importantes do que outros.
A morte do Príncipe Ferdinando dá fim ao período denominado de “paz armada”. Essa expressão, aparentemente paradoxal, tem forte fundamentação jurídica, especialmente da Teoria do Estado, e partia do pressuposto de que se todo mundo se armasse até os dentes (e eu realmente nunca entendi como alguém pode ter dentes armados…) ninguém brigava com ninguém. Afinal, se todo mundo está armado até os dentes, ninguém se atreveria a dar o primeiro tiro, evitando a rajada de respostas.
Qualquer semelhança com a discussão sobre a liberação de uso de armas no Brasil definitivamente não é coincidência, mas mero mais do mesmo.
E como a História nos ensina, essa ideia se sustentou 40 anos mais ou menos e só. E quando degringolou, tínhamos eliminado mais de 20 milhões de vidas. Eu quero crer que não foi uma ideia muito inteligente, mas tenho uns tios no whatsapp que não concordam muito comigo…
Fato é que a partir daí o investimento bélico foi visto como uma tática de sobrevivência das nações. Obviamente, a coisa se intensificou com a Segunda Guerra Mundial, que somou à carnificina do séc. XX mais 60 milhões de vidas perdidas, e não parou mais. A prova disso foi a Guerra Fria, que se sucedeu à Segunda Guerra.
- Voltando para terras tupiniquins…
Ao longo desse percurso todo, demonstrações militares não servem para deleite matutino de autoridades, mas para demonstrar força. Basta puxar da memória aí quantas vezes você já viu na TV alguma notícia dando conta de tensão entre países por causa de manobras militares após a manifestação de algum líder de Estado.
Pensa aí também nos desfiles que a gente vê na TV da China e da Korea do Norte. Pensa que os EUA investem 725 bi de dólares nas suas forças armadas. Se isso aí não criar um imaginário na sua cabeça, nas mais cria.
Agora junte aí o fato de que não havia absolutamente nada de relevante para justificar um desfile militar no dia 10 de agosto.
Se fizer uma pesquisa você vai descobrir que dia 10/08 foi o dia em que Madagascar foi descoberta (1500), dia de deflagração da Revolução Francesa (1792) (e é importante lembrar a relação conturbada dos chefes brasileiro e francês), dia de nascimento de Jorge Amado (1912), Duda Mendonça (1944) e Fábio Assunção (1971); e de morte de Frei Tito (1974) e Florestan Fernandes (1995). É também o Dia Mundial da Preguiça e o Dia Nacional do Biodiesel.
Não é difícil concluir que não há nada muito portentoso para justificar um desfile. Não que eu entenda que o Dia Mundial da Preguiça seja uma data irrelevante. Muito pelo contrário. Paul Lafargue deu uma contribuição monumental com seu escrito “O Direito à Preguiça” (1880) e seu escrito deveria ser mais explorado. De todo modo, acredito que este dia deveria ser comemorado mais com um preguiçoso feriado do que com um desfile militar…
E porque isso tudo não faz o menor sentido é que entra o simbolismo, o significado. É preciso abstrair do desfile e entender o porquê do desfile.
- Um almoço caro
Imagine que você está muito interessado em uma pessoa e a convida para comer algo. Se tiver os mesmos hábitos alimentares que eu, um pão com manteiga e café resolvem o problema de qualquer momento de suprimento alimentar. Só que você não faz ideia do que a pessoa gosta de comer, então você a leva para o restaurante francês mais caro da cidade.
A pergunta que fica é: você levou essa pessoa para o restaurante francês porque comidas francesas caras matam mais a fome? Você sabe que não. Mais do que a comida, é o símbolo. É mostrar que aquele é um momento de investimento, que você se importa e pretende demonstrar que se importa. Afinal, pão francês tem em qualquer padaria da esquina, já um Foie Gras não…
É por isso que a gente substitui o pão de R$ 1,50 por algo que a gente nem gosta tanto assim e custa R$ 250,00 (com uma quantidade alimentar em gramas muito semelhante…). O almoço é caro porque o símbolo é forte e é preciso mostrar isso.
Voltando ao nosso ponto, observamos que o “desfile” tinha o objetivo declarado (significante) de entregar um convite ao Presidente. Ocorre que um tanque de guerra tem um padrão de consumo de combustível de mais ou menos 1,5km/l (e você aí achando que o seu Opala é bravo…). Ou seja, convenhamos que mandar um carteiro dirigindo uma Lamborghini (4,9 km/l) sairia muito mais barato…
A questão é que a intenção (significado) era outra: mostrar que as forças armadas estão subordinadas ao Presidente (não por lei, mas por lealdade), demonstrar poderio de força e fazer uma exibição do que o Estado (vulgo o Presidente) tem em mãos. Foi um almoço caro, mas porque o símbolo é forte e o momento, analisando sob a ótica presidencial, demandava.
A popularidade do governo cai, acumulam-se derrotas no Congresso, a CPI da Covid avança negativamente para o governo e as eleições gerais se aproximam. Para as pretensões de reeleição, não poderia haver cenário pior. Lembremos que de FHC para cá todos os chefes de poder levaram a cadeira de duas vezes. Ou seja, quebrar isso seria simbolicamente (ah… os símbolos) ainda mais desgastante para o discurso (assim como ocorreu com o amigo Trump).
Exatamente por isso, o investimento foi alto para tentar buscar a imagem de força que o governo precisa. Ocorre que há limites e o Presidente aprende (ou pelo menos deveria) todos os dias que essa ideia de “líder supremo” é meio para “inglês ver” e está inserida em uma Constituição que nasceu parlamentarista e, por isso, não deu tanta supremacia assim para o Executivo.
E consciente destes percalços institucionais, a Constituição (novamente) traça linhas muito genéricas sobre atos ilícitos do chefe do Executivo no seu art. 85. Propositalmente, o texto do art. 85 cabe tudo e não cabe nada. Para desespero dos penalistas, esta é uma técnica comum na Constituição e tem o objetivo de deixar tudo em aberto para o contexto.
Isso não traz insegurança jurídica? Obviamente que sim. A pergunta é o que não traz…
E em Brasília tem gente especializada em símbolos e já perceberam que este ato presidencial, assim como outros, é mais um ato de fraqueza do que de força. A violência, a força física, o contato bélico e a imposição de poder são resquícios muito pouco civilizados de relações humanas e que devem ser substituídos pela política – que nada mais é do que o diálogo e a convivência.
Ou seja, quem precisa de guerra, não sabe fazer política; quem precisa de berrar, não sabe conversar; quem precisa da ameaça, não sabe convencer; quem precisa demonstrar força, não é forte de verdade. O símbolo, assim como um feitiço, atinge o efeito contrário e evidencia isolamento, incapacidade de diálogo e inabilidade política do Presidente. Ele é fraco, sabe disso e não sabe o que fazer para superar a sua deficiência. Então, como um menino mimado, quando dono da bola, ameaça levar a bola embora caso não seja escalado como atacante, mesmo sendo incapaz de mirar entre os chinelos emparelhados no asfalto.
E para piorar, desestabiliza uma fauna delicadíssima chamada Brasília que precisa de uma floresta sadia para sobreviver. O centrão, ao contrário do que parece pensar o Presidente, não se alia somente a quem paga mais. O centrão se alia a quem mantem a floresta em pé para que a sombra permaneça por tempo indeterminado.
O que o Presidente não entendeu é que o Foie Gras é um pato entalado de gordura que foi torturado a vida inteira para servir de iguaria para uma minoria com paladar calibrado para viver de situações excepcionais. E o que mais precisávamos hoje era só de um bom pão com manteiga e um café assim bem simples, mas que fosse barato, resolvesse o (nosso) problema e não parecesse algo megalomaníaco de uma mente doentia que não se importa com a dor e o sofrimento do pato.