O papel do Estado na (sobre)vida do cidadão: a gente quer comida ou comida, diversão e arte?

Ou como a retórica eleitoral atrapalha a gente a pensar…

Esta semana estamos envoltos em novas polêmicas que, no fundo, nada mais são do que cortinas de fumaça para o jogo eleitoral. Imagino que você já se divertiu horrores nos grupos de whatsapp da família debatendo se o fiofó da Anitta é arte ou não, se sertanejo universitário vale o que custa ou não.

Independente de você compor o time do governo futebol clube ou oposição futebol clube, havia argumentos e mantras meticulosamente construídos para serem replicados matraquicamente em prol de reforçar a narrativa da sua torcida favorita. É um deleite para os programas da tarde de fofoca, mas um verdadeiro desastre para a democracia – o que, ultimamente, parece não ter muito valor em terras tupiniquins.

De todo modo, como este que vos fala é meio teimoso, vamos tentar sair do fosso discursivo raso, sem apoiar ou criticar ninguém e ir aos pontos desta discussão que realmente são importantes e que, normalmente, o seu tio do grupo da família não está disposto a debater porque dá muito trabalho. Entretanto, qual esforço não vale a pena , quando o objetivo é gerar entretenimento gratuito e algum fogo no parquinho do almoço de domingo…
Partindo desta premissa, alguns itens precisam ser destacados antes de qualquer coisa.
O primeiro é o fato de que o Estado gasta dinheiro com arte. Veja, antes de a gente discutir o que é arte, quanto se gasta e todas as outras coisas, é preciso firmar esta premissa. Isso é importante porque ela é, por si, um debate.
O Estado deve gastar dinheiro com arte, independente de que tipo de arte estejamos falando? Responder essa pergunta dá uma pivotada em assuntos secundários, como o fiofó da Anitta ou o potencial lírico do sertanejo universitário.
E vou tentar responder o que pode parecer óbvio, porque quando se diz o óbvio é que percebemos como a noção de “obviedade” é subjetiva…
Pois bem, o Estado gasta sim dinheiro com arte e precisa gastar. Qualquer pessoa que, minimamente, tenha algum contato com a operação de qualquer atividade artística sabe que arte é um troço caro demais! Tudo que é arte alcança patamares de valor que beiram o surrealismo.
A minha comadre @lucianamariapinto é percussionista no bloco de carnaval Baque de Mina de Belo Horizonte, é uma grande conhecedora da História da Música e já me proporcionou inúmeros ensinamentos sobre como funciona este mercado. E o batido é de outro patamar, considerando a nossa população assalariada e sugada pela inflação que, já há um bom tempo, vem sugando as finanças e as energias de quem precisa manter uma casa funcionando até o fim do mês.

Ou seja, jogar toda esta estrutura de arte para a “liberdade” da inciativa privada seria o mesmo que condenar uma massa dantesca de pessoas , a simplesmente nunca mais ter acesso a qualquer produção artística. E isso tem alguns problemas. O primeiro deles é humanitário. O que nos distingue da catraca do shopping que conversa com você, dá bom dia, agradece a visita e deseja boas compras enquanto sobe aquela alavanca que te impede de ir embora sem pagar, é exatamente a capacidade de se aborrecer com uma fala animadíssima de uma máquina que terá o mesmo tom com uma criança, um surdo e um vira lata caramelo.

Ou seja, a arte, a filosofia e todas essas parafernálias que não servem para absolutamente nada, é que nos tornam humanos, exatamente porque elas não servem para absolutamente nada! Servissem para algo, fatalmente em pouco tempo haveria um programa com inteligência artificial para fazer no nosso lugar. É exatamente este conjunto de elementos que nos coloca no patamar de seres cientes, sencientes e conscientes. Sem isso, somos catracas substituíveis e inúteis, assim como escravos, plebeus e membros de “raças inferiores” sempre foram tratados ao longo da História. Essas inutilidades nos sensibilizam, fomentam a criatividade, desenvolvem a empatia e as tão afamadas habilidades sociais (soft skills para a galera que adora os nominhos em inglês do portentoso mundo corporativo).
Logo, o acesso à cultura é algo importante ao nível de necessidades sociais básicas, como alimentação e moradia. É

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por isso que o Estado financia o carnaval, a semana de arte, os museus, a campanha de popularização do teatro e mais essa miríade de coisas que sempre estiveram aí na sua testa e você só não foi no grupo da família brigar porque ninguém mostrou a fatura no twiter.
E essa conclusão só não é possível se você for da galera que acha que cultura, lazer e arte são luxos dispensáveis , que não devem fazer parte do cardápio de quem não pode pagar por elas.

Mas aí o diálogo fica um pouco difícil, dado que eu confesso uma certa dificuldade de ser empático com a catraca do shopping e com quem acha que eu deva ser empático com a catraca do shopping.

Se a gente supera esta questão (e eu espero bastante que a gente consiga superar esta questão pelo menos), tem um outro ponto. Por causa dessa importância e necessidade básica, adivinha onde está a fonte de ação estatal em atividades culturais? Sim… no livrinho.
A Constituição da República Federativa do Brasil-  aquele livrinho que, assim como a Bíblia, é muito citado, mas muito pouco lido, menciona a cultura 8 vezes ao longo do seu texto (mais do que muita coisa que se dá muito mais relevância por aí. E não é só isso, a Constituição tem um Capítulo só para isso (art. 215) e cria uma estrutura no mínimo interessante de analisar. Dá uma olhada comigo:

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”

Você percebeu que o texto é imperativo??? A Constituição não diz que o gestor vai analisar se agrada ou não financiar a cultura. Ela diz que vai. E vai além, o Estado deve garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso à cultura.  Ou seja, meu dileto crítico do fiofó da Anitta ou da lírica sertaneja, tudo isso aí que você critica nada mais é do que o cumprimento de uma obrigação constitucional por parte do gestor. Logo, criticar quem faz é ignorâncias das obrigações constitucionais dos gestores, ignorância ou má-fé mesmo.
Se você acha que está errado, bora começar a mobilização para mudar a Constituição. Mas só para te alertar (e alentar), é direito fundamental ok. Não dá para suprimir… desculpa decepcionar, mas a cultura agradece.
Pois bem… passada essa premissa básica (e que é laconicamente esquecida), a gente pode concluir assim: o Estado gasta com cultura; o Estado precisa gastar com cultura porque isso é fundamental para uma vida digna e humana; o Estado gasta com cultura porque a Constituição obriga que o Estado gaste com cultura.
Com isso em mãos, tem outra coisa importante: a Constituição não diz o que é cultura! E ainda bem que não né… Porque não dá para colocar na mão do gestor a decisão sobre o que é cultura e o que não é, sob pena de termos uma verdadeira ditadura cultural, onde seremos massacrados pelo duvidoso gosto cultural do gestor.
Cultura é aquilo que existe, goste eu ou não (e esse eu é metafórico e significa que é você também). Logo, o financiamento cultural não pode depender do gosto artístico do gestor, mas do que existe e é demandado no momento da sua avaliação, mais ou menos de acordo com a demanda da própria população consumidora daquele produto.
Ou seja, o que o gestor gosta ou o que você gosta é de somenos importância, mas aquilo que de fato responda às demandas culturais da área de atuação do gestor. E aí meu consagrado,  vou chamar os meus queridos representantes do nosso pseudo liberalismo ou do liberalismo tupiniquim (aquele da liberdade econômica anárquica que convive bem com a regulação do que as pessoas fazem nos seus respectivos quartos entre adultos…): neste contexto, vale a meritocracia…
Quem está na moda, quem está tocando para todo lado, quem aparece mais, é exatamente quem venceu a batalha da atenção cultural e, com isso, vai gerar mais público, mais renda e mais visibilidade. Logo, me ajudem economistas das redes, esses serão os “jogadores mais caros”, pelo óbvio de que são os mais demandados!
E neste ponto, o raciocínio é simples e objetivo: para deslocar um artista e toda a sua parafernália fica caro (acho que nunca usei a palavra parafernália duas vezes em um mesmo texto e isso é indício de que realmente eu não sei dizer o que esse povo carrega. Só sei que é muita coisa). O cachê é caro porque ele é requisitado, dado que ele está no topo.
Não é mérito? E se você não gosta dele, tem quem goste meu consagrado (do contrário ele não estava na mídia). E se esse artista faz sucesso, é bem provável que naquele local em que o Estado o contratou vai lotar também e, neste ponto, o gestor estará cumprindo a sua obrigação constitucional como é possível em uma democracia: agradando uma maioria provável.
Se a gente quer discutir que tem algo errado nisso, é absolutamente infantil começar a discussão pelo valor do cachê do artista , sem se perguntar quanto ele cobra em qualquer outro show; é ainda mais infantil começar questionando a qualidade artística de fulano ou beltrano, dado que isso é hipócrita e autoritário, pois esconde uma vontade ditatorial de impor o seu gosto para todo mundo.
Por fim, é ingenuidade travar esta discussão sob o prisma de que não temos saúde, segurança e educação, dado que todos são direitos fundamentais também impostos ao poder público. Ou seja, tudo isso é dever (e não opção) do Estado e exatamente por isso tudo isso é feito como é possível fazer.
Dá para discutir limites? Claro que dá! Dá para discutir critérios? Claro que dá!
Agora o que não dá é achar que cultura tem menos valor, principalmente considerando que se trata de atividades voltadas para eventos gratuitos e, portanto, acessíveis a quem não tem o privilégio de ir a um show no Palácio das Artes que custa R$ 350,00. Não dá para achar que questionar a capacidade artística de alguém vá gerar alguma resposta, pois apenas expressa o seu preconceito com o que você não gosta. E não dá para achar que vamos resolver o problema da educação, saúde e segurança negando o acesso à cultura para as pessoas.
Como disseram os Titãs e foi devidamente incorporado ao texto constitucional, “a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão e arte”. E como eles mesmos questionam sobre qual é a sua sede, não dá para saber qual é a sede, a fome e o interesse cultural de cada um, mas nem por isso dá para aceitar ceifar esse traço que nos torna evidentemente humanos por causa de uma pseudoeficiência ou pseudoeconomia que servem mais a palanques interesseiros ou interessados, do que para a efetiva melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Acabei… agora você escolhe se vai rebolar até o chão, afogar as mágoas ou bater cabeça.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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