Nazismo e Comunismo são faces da mesma moeda ou voltamos às discussões rasas da internet?

Os últimos acontecimentos nos mostraram como pensar no Brasil anda ficando cada vez mais revolucionário.

Obviamente que você e toda a torcida da seleção brasileira de cricket viu nesses últimos dias na internet a discussão sobre as falas do youtuber Monark e no dia posterior a sua defesa pelo jornalista Adrilles.  Ambos, para tacar mais fogo no parquinho tupiniquim, foram devidamente demitidos de seus postos.  Logo… eu não tenho o menor interesse em entrar nesse mérito. Se você não sabe, não é por aqui que vai saber. Se você sabe, não interessa ouvir de novo. O meu ponto aqui é outro: me interessa a defesa que foi feita dessas pessoas que foram demitidas: o Monark e o Adrilles.

A maioria das pessoas que defendeu esses dois seres humanos cuja miserabilidade e ausência de civilidade são de difícil mensuração utilizaram o mesmo argumento. E foi mais ou menos o seguinte:  “Pera lá, não pode Nazismo (e ninguém com mais de um neurônio dá conta de sustentar o contrário), mas pode o Comunismo? O Comunismo matou mais de 100 milhões de pessoas e tem um partido comunista no Brasil!! E por que então o Comunismo também não é proibido se ele foi tão mortal para a humanidade, assim como foi o Nazismo?”

O ponto a pensar é esse aí: por que pode o Comunismo e não pode o Nazismo? 

E a resposta é tão simples quanto incompreendida: existe um abismo de diferença entre a teoria e o que fazem da teoria. Tem um negócio na linguagem que chama “autonomia semântica do texto”. O nome é pomposo, mas a ideia é meio simples: enquanto se faz um texto, ele é do autor. Depois que o texto está feito, ele é do leitor e o leitor faz o que quiser com ele. Ou seja, o texto é uma ferramenta que pode ser acessada e utilizada por qualquer um e o autor do texto não tem a menor possibilidade de interferir nisso. A maior prova disso foi quando a UFMG usou o livro de um poeta no seu vestibular e o autor do poema, em entrevista jornalística posterior, afirmou que erraria todas as questões do vestibular sobre o seu próprio texto!

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Te pareceu absurdo?  Não é.  Porque quem fez a leitura do texto leu com os olhos de quem leu , ou seja, os seus próprios e não com os olhos de quem escreveu. E ele leu e entendeu o que ele bem quis. E não tem como controlar esse caos! Não tem “ctrl c”/”ctrl v” de cérebros e pensamentos.

E a partir disso a gente pode tirar uma série de exemplos.

Pensa em uma faca de pão dessas que você tem aí na sua cozinha. Quem fez a faca de pão estava pensando em cortar pães e besuntar biscoitos. Entretanto, você há de concordar comigo que é bem possível usar essa faca de pão para ferir uma pessoa ou um animal inocente. A faca é apenas a ferramenta e a forma como ela vai ser utilizada não sofre qualquer interferência do seu forjador.

Pergunta absolutamente estúpida, mas necessária: um ser humano ignóbil pega uma faca de pão e fere gravemente uma criança inocente. Alguém em sã consciência vai duvidar que se trata de um ato bárbaro e que deve ser repudiado com veemência?  Eu espero muito que não.

Agora você consegue imaginar alguém ir para a rua ou para esse palco caricato da internet bradar: vamos acabar com as faquinhas de pão! Essas de serrinha pontuda então são um perigo para a sociedade! Facas de pão ameaçam nossas famílias e as criancinhas estão mais frágeis com facas de pão circulando livremente por aí. Te pareceu estúpido? Tomara que sim! Porque é estúpido!

Agora vamos mudar o exemplo. Pensa em uma granada, dessas que eu espero muito que você não tenha na sua casa. Você há de concordar comigo que uma granada não tem muitas funções, além de explodir vigorosamente o que estiver no seu caminho.

Agora imagina que um ser humano ignóbil pega essa granada e jogue em uma escola, ferindo várias crianças inocentes. Alguém em sã consciência vai duvidar que se trata de um ato bárbaro e que deve ser repudiado com veemência?  Eu espero muito que não.

Mas te parece razoável que haja protestos para que granadas tenham sua circulação restrita e que é bem proporcional concluir que não é muito vantajoso aceitar que pessoas tenham granadas nas suas cozinhas?

Depositphotos – Interrogações

E qual a diferença entre a granada e a faca de cozinha?

A diferença é que a faca de cozinha nasce inocente e pode ser utilizada para o mal. A granada nasce malévola e não tem como ser usada para o bem, porque a sua gênese é malévola. A granada nasceu para causar danos e por isso só pode ser manuseada por especialistas em situações específicas e controladas, a fim de evitar que vidas inocentes explodam pela falta de bom senso de quem as manipula.

E para que essa ladainha toda? Para te explicar que esse raciocínio aí acima , para sustentar que o comunismo tenha que ser proibido assim como o nazismo é tão evoluído quanto um tardígrado! O comunismo é a faca de pão e o nazismo é a granada.

O comunismo não tem no seu texto absolutamente nada que crie raças superiores e raças inferiores e não há a premissa de que parcela da população humana deva ser eliminada para o bem da humanidade. É óbvio que em nome do comunismo muita gente matou e milhões de pessoas morreram. Duvidar disso é estupidez. A questão é que a aberração de quem fez isso em nome do comunismo não pode ser equiparada à teoria comunista.

Por outro lado, o nazismo tem no seu texto a premissa da superioridade de uma suposta raça e a inferiorização das demais, tem na sua gênese a intenção de eliminar as ditas “raças inferiores” para o bem da humanidade. A premissa teórica do nazismo é genocida. Não tem como usar o nazismo de forma ingênua, assim como não é possível manipular seguramente uma granada na sua cozinha!

Essa é a diferença! Em nome do comunismo muita gente morreu, mas o comunismo não prega a morte. Assim como em nome do cristianismo muito gente morreu, mas o cristianismo não prega a morte.  Alguém duvida que a Igreja Cristã eliminou milhões de seres humanos ao longo da História sob a justificativa de que estava fazendo um bem para a humanidade cristã? E alguém acha razoável eliminar o cristianismo por isso??? É óbvio que não! Exatamente porque a teoria cristã não é a teoria do terror e muito menos a teoria da morte. Se alguém se valeu dela para isso, o texto, no seu significado autônomo, não tem culpa! A pessoa deve ser combatida e não o texto!

Então essa discussão, da forma como foi posta, é tão útil quanto uma nota de 3 reais. Querer comparar a premissa teórica do nazismo com a pragmática do comunismo é um erro tão elementar quanto o do aluno que compra a monografia e não a estuda antes da banca.

E porque isso acontece? Por oportunismo! Alguns que discordam dos pensamentos de esquerda usaram o fato em questão para deturpar a discussão e rebaixar a teoria comunista ao mesmo nível da teoria nazista, o que só mostra ignorância ou má-fé (ou os dois). E daí encontraram o ambiente adequado para impor a eliminação daquilo que se discorda teoricamente, em razão do seu passado. Curiosamente, como dito acima, essas mesmas pessoas normalmente se dizem cristãs (como a maioria dos brasileiros mesmo) e não tencionam eliminar o cristianismo em razão do seu passado, a evidenciar a incoerência do raciocínio desenvolvido e, se você me disser que cristianismo não tem relação com política, a gente pode encerrar a conversa…

A democracia precisa ser vigiada continuamente!

Em nome da democracia, tem gente que quer ditadura. Em nome da paz, tem gente que quer guerra! Em nome da harmonia, tem gente que quer eliminar direitos. Em nome da vida, tem gente que quer a morte. Nem por isso é razoável eliminar a democracia, a paz, a harmonia e a vida, mas sim interromper as pessoas que usam esses discursos de forma distorcida.

O nazismo, por sua vez, como uma arma química, deve ser manipulado apenas por especialistas (historiadores, filósofos e estudiosos), a fim de utilizá-los na dosagem certa para que não seja esquecido, mas com o cuidado correto para que não seja repetido. Nazismo é uma chaga da História humana.  Há muitas outras, mas o nazismo é vergonhoso porque mostrou que precisamos de pactos sociais sólidos porque não dá para confiar apenas nas pessoas. O nazismo venceu no voto! O nazismo se implementou dentro da estrita legalidade. O nazismo tinha teoria e filosofia. E encontrou o momento com a conjuntura de fatores favorável para se instituir. O mais surreal é que o nazismo é vivo e forte. Suas premissas estão por aí , deslizando nos desvãos da democracia, com suas manifestações subliminares e ocultas, mas de largo alcance. Qualquer abertura, por mínima que seja, para que se esqueça institucionalmente o que foi o nazismo e se permita defender qualquer segurança para discursos nazistas, vai permitir que ele se instale democraticamente para acabar com a democracia no dia seguinte.

E que fique claro, isso acontece com aqueles pensamentos e “teorias” que nascem e que possuem no seu embrião o ódio, a diferenciação de seres humanos, o genocídio e a morte como premissas. Qualquer outra teoria é a faca de pão e, por isso, basta vigiar quem está com a faca na mão. Já o nazismo é a granada. Se estiver na mão de um lunático ou de uma criança, explode uma hora ou outra.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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