A Juíza, a lei e o bom senso

O papel do juiz no processo e as teratologias que a Justiça não consegue evitar.

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Estamos em meio a uma torrente de informações amalucadas sobre um caso que repercutiu muito na mídia de uma juíza de Santa Catarina que, em uma audiência, buscou convencer uma criança de 11 anos vítima de estupro de não interromper uma gestação fruto deste estupro. Obviamente, quem já me conhece daqui sabe que eu não quero divulgar ou repercutir o caso, pois isso já está se fazendo exaustivamente.

O que me interessa é olhar a questão por outro ângulo e pensar um pouquinho sobre o que, de regra, mais importa e, exatamente por isso, é o que menos se divulga. Estou falando dos motivos pelos quais a juíza decidiu “assim” e não “assado”.

O Poder Judiciário, nos primórdios do iluminismo que fundou o modelo de Justiça/Direito que temos hoje, era considerado um poder que não deveria interpretar a lei (que era confundida com o direito, como se fossem sinônimos). A lei, o “dever ser” social que incide sobre todos, era papel do legislador, considerado o legítimo representante da vontade do povo.

O juiz, como manifestação de um poder técnico e não legitimado por escrutínio (e isso vai me render outro texto, pois é importante falar a respeito), era a “boca da lei”. Dizendo em bom tupiniquim, era como se o juiz não pudesse pensar! Ele conhece o direito (sempre tem um nome bonitinho, então vai mais um: iura novit curia) e o aplica, sem fazer qualquer juízo de valor acerca do que está fazendo, sendo um mero replicador/concretizador da lei – produzida pelo legislador, que é o habilitado para a esta tarefa. Obviamente que o caminhar da História e da vida foi mostrando que isso não tinha o menor cabimento.

O juiz é um ser humano e não existem seres humanos neutros. Tudo o que fazemos está impregnado das nossas visões de mundo, dos nossos saberes, das nossas ignorâncias, dos nossos preconceitos e das nossas filosofias.

Isso vale para escolher um sapato, entrar em um relacionamento ou para julgar criminalmente outro ser humano. E esse é o ponto, pois o ato de julgar não priva o juiz (ainda bem!) da sua humanidade! Além disso, o desenvolver do Direito e da História do Direito demonstraram que muitas vezes é preciso muita sensibilidade humana para que se fizesse uma interpretação da lei condizente com parâmetros mínimos de humanidade. Ou seja, a lei é sempre interpretada; a interpretação sempre depende do intérprete; o intérprete é sempre um ser humano, com todas as suas vicissitudes; o ato de interpretar é sempre um ato de concretizar a lei de acordo com aquela circunstância. Via de consequência, essa neutralidade que a “imparcialidade do juiz” tanto brada é meio capenga, pois parte do princípio de que o juiz não se sensibiliza (no sentido de agir com algum sentimento de si mesmo) com o caso que julga e isso, definitivamente, não é correto.

Daí você poderia me questionar: mas Hudson, assim cada um julga de acordo com o próprio pensamento e estamos no caos! Bom… eu respondo que as coisas já acontecem mais ou menos assim mesmo e não estamos necessariamente no caos, mas alguns itens precisam ser refletidos.

Há um ponto positivo e um ponto negativo nessa incerteza. O positivo é o fato de que a vida é complexa demais para ser reduzida em caixinhas prontas, empacotadas pelo legislador e entregues em delivery via diário oficial. Acredite, eu já redigi o texto de várias leis e para quem tem um pouquinho de responsabilidade é um ato desesperador: você escreve e encontra situações problema; escreve de novo e pensa em uma exceção; mexe em tudo e percebe que a chance de se aplicar ficou menor.

É muito difícil reduzir a vida a um texto.

Por outro lado, as pessoas precisam de segurança! Um mínimo de segurança e essa função é dos agentes do Direito e, em última instância, do Poder Judiciário. E esse é o ponto que eu quero chegar.

Há um questionamento imenso sobre o volume de recursos que chegam aos tribunais superiores e abarrotam de processos os Ministros que lá decidem. Pois bem, acredito que a discussão não é sobre o volume de recursos lá, mas sobre o porquê esses tribunais superiores estão abarrotados de recursos! Esse volume não é o problema, mas o efeito colateral do problema. O problema mesmo é entender o que foi feito “cá embaixo” para que o caso “suba”. Se a gente pega o “Justiça em Números” (lá no site do CNJ) e observa o número de recursos e habeas corpus providos em tribunais superiores, vai dar para perceber que tem um problema de comunicação entre as instâncias superiores e as instâncias de base.

Você novamente deve estar se perguntando: Hudson, o que o caso dessa juíza tem com isso tudo?

Respondo: é preciso repensar o modelo decisório no Brasil para o bem do próprio judiciário e para o bem dos cidadãos jurisdicionados. O juiz é um ser humano como qualquer outro, mas em uma posição delicadíssima na sociedade e com uma carga de responsabilidade que exige uma visão de todo muito mais ampliada do que a dos demais membros desta sociedade.

No mundo do Direito, o juiz está na posição de agente mais preparado para a avaliação de uma demanda e não por outro motivo ocupa o cargo de magistrado. O ponto é que exatamente por causa deste preparo acima da média, acabamos por presenciar situações em que o juiz atua descolado do todo, gerando situações como a da juíza de Santa Catarina. E aqui que entra a minha percepção sobre a relação do juiz (e aqui me refiro à magistratura em geral, mas especialmente aos juízes de primeira instância) e a lei. A lei nem sempre (na verdade muitas vezes) reflete o que gostaríamos que ela fosse. A lei muitas vezes estabelece deveres que julgamos absurdos, desnecessários ou insuficientes. A lei muitas vezes impõe deveres e penalidades com as quais não concordamos (seja pelo nível de severidade ou pelo inverso). Por fim, na lacuna da lei ou na divergência de interpretação, cabe aos tribunais superiores pacificarem o entendimento. Aqui se encaixa a imparcialidade possível para o magistrado. É preciso que as pessoas que ocupam esta posição tenham a clareza de que esta cadeira não tem a função de mudar o mundo como alguns entusiastas de internet parecem querer fazer crer. Essa cadeira não dá poder de determinar a vida das pessoas fora do que está construído em nível democrático macro.

Neste aspecto, o renascimento iluminista não estava tão equivocado assim, pois devemos voltar a refletir que, de fato, os rumos das nossas vidas estão (ou deveriam estar) mais nas mãos dos políticos (legisladores e Executivo) do que do Judiciário. A maior prova disso foi a recente decisão do STJ sobre o rol de tratamentos a serem impostos aos planos de saúde. Os planos tinham interesse que o rol fosse taxativo para reduzir o número de procedimentos possíveis. As pessoas tinham interesse que fosse exemplificativo para aumentar o número de procedimentos possíveis. O STJ decidiu que era taxativo. No dia seguinte havia 5 projetos de lei para determinar que fosse exemplificativo.

Percebe como funciona? E isso não é um problema! Só precisamos perceber isso. Os juízes precisam perceber isso, até para sofrerem menos e impor menos sofrimento às pessoas. É preciso que se perceba que a maioria dos casos que chegam para decisão não carregam grande carga de complexidade. Para estes casos, a carga de interpretação é menor é preciso que a magistratura de primeira e segunda instâncias compreenda que ela deve ser um multiplicador das decisões de instância superior. Isso reduz a carga de recursos para os casos de menor complexidade e acelera a tramitação processual. Caso entenda equivocado um posicionamento superior, o magistrado tem a produção acadêmica como veículo de debate e discussão. Caso discorde do conteúdo de uma lei, tem o mesmo caminho. Há a possibilidade de proposituras de revisão de entendimentos dos tribunais superiores por meio das entidades representativas da magistratura, assim como a revisão de leis.

Mas no dia a dia, é preciso que se busque agir com a visão do todo para que tenhamos um Judiciário mais funcional, principalmente para os casos de menor complexidade. E denomino caso de menor complexidade os casos em que há lei ou entendimento jurisprudencial superior a respeito e não casos menos graves. O caso de Santa Catarina era gravíssimo, mas de baixíssima complexidade, visto se tratar de dispositivo expresso de lei. Os casos de maior complexidade é que devem ocupar a carga de maior reflexão e desenvolvimento criativo do magistrado, a fim de construir o seu entendimento a partir da ausência de base legal ou jurisprudencial. O juiz é o mais preparado não para os casos do dia a dia, mas para os casos difíceis, aqueles que sequer a parte tem um entendimento sólido a respeito e demanda a manifestação de um agente altamente preparado para apresentar uma solução fundamentada, lógica e proporcional.  Fugir disso está fazendo da magistratura um ambiente para briga de egos, para manifestações de interesse e posicionamento pessoal e para fazer com que o cidadão fique a mercê da sorte total, o que foge dos objetivos institucionais do Poder Judiciário.

Em uma democracia, a principal característica que observamos é que ninguém pode tudo (vide o caso do STJ) e esse é o seu grande valor. Só basta que todos entendamos isso para compreender que o trabalho de aplicar o direito não é necessariamente o de aplicar o direito que gostaríamos, mas o de aplicar o direito que existe.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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