Não precisava de maiores explicações. Apenas de bom senso.
Esse texto foi feito com uma tremenda satisfação por mim, mas definitivamente não é o meu lugar de fala. Estou falando com olhos que não sentem sobre o que eu falo. Então, para incluir nele a sensibilidade necessária de quem está no lugar que menciono, desta vez eu fiz e fui “supervisionado” por quem de direito.
Então tive a valorosa atenção da Enfermeira Carla Prado Silva (@carlapradoenf) que é uma líder feminina de um grupo dantesco de mulheres que historicamente foi liderado apenas por homens. Ela sabe muito bem o que é ser mulher e ser líder em um ambiente masculino, excludente e que relega a mulher a atividades subalternas.
Também contei com a valorosa atenção da Advogada e Professora Universitária Déborah Lopes (@dehlopess.adv) que é uma profissional do Direito que vem deste recente grupo de mulheres que andam mudando (ainda bem!) a cara do Direito. Ela sabe muito bem o que é ser mulher e ser negra em um Judiciário ainda massivamente branco, masculino , fundado em uma cultura muito pouco empática à igualdade de gênero e cor.
Pois bem… feitas as devidas apresentações, posso continuar confiante de que elas não me deixaram falar bobagem:
Enquanto em terras tupiniquins, estamos debatendo a fama do ser que abusou de uma mulher em crise (e ficou famoso por isso!!!!) e o que ele posta de “relevantíssimo” em suas redes, poucas notinhas foram destinadas para um dos grandes eventos históricos desta era.
Enquanto em terras tupiniquins, estamos debatendo os desfechos dos reality shows do momento, com suas subcelebridades fazendo acrobacias circenses por holofotes e likes, pouca atenção foi dada para um dos maiores passos para a história da população negra e, principalmente, das mulheres.
Enquanto em terras tupiniquins, estamos tentando (muitas vezes inutilmente) provar que a terra não é plana e que a tia do whatsapp não é uma fonte confiável de informação, a noção de representatividade e ruptura concreta (e não meramente institucional ou simbólica) da segregação pela cor e pelo gênero ganha outro patamar na maior economia do mundo.
Pois bem. Se é assim, eu que vivo em terras tupiniquins como um estrangeiro vou falar então do que, aparentemente, não importa.
Dica para a vida: se quase todo mundo está olhando para um lado, é bem provável que aquele deve ser o lado a ignorar. Experimente olhar para o quadrado que está quase vazio…
Voltando ao que (não) importa… Semana passada a juíza Ketanji Brown Jackson, que atuava como juíza da Corte de Apelações (é como se fosse uma desembargadora no Brasil), para o Circuito do Distrito de Colúmbia (é como se fosse o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios no Brasil), foi aprovada pelo Senado (após indicação do Presidente Joe Biden), para compor a Suprema Corte dos EUA.
Primeiro ponto importante: sim, você pode falar no grupo de whatsapp da família, com aquele tom horrorizado e alarmante, que os juízes da Suprema Corte dos EUA são escolhidos IGUALZINHO são escolhidos os ministros do Supremo Tribunal Federal no Brasil. Não é fake news e nem a Nova Ordem Mundial tentando dominar e demonizar o mundo. É só porque sempre foi assim mesmo… (aqui você inclui emojis de espanto).
Segundo ponto importante: eu não sabia escrever “emoji”. É a primeira vez que escrevo essa palavra na vida e tive que confirmar no dicionário Google como escrevia. Isso é sintomático…
Voltando mais uma vez…
O estardalhaço todo que essa notícia precisava muito fazer (e não fez!!!) se dá porque Ketanji é mulher e é negra. E os dados mostram porque isso é tão relevante: até quase a década de 1960 a segregação racial nos EUA era institucional. Ou seja, não era uma cultura, mas uma regra posta pelo Estado e pelas instituições.
Em 1954, esta mesma Suprema Corte dos EUA julgou inconstitucional a regra que segregava brancos e negros em escolas “próprias”, na análise do famoso caso Brown vs Board Of Education. Ou seja, só depois de 1954 que puderam existir (não sem muita resistência) escolas em que estudavam brancos e negros juntos.
Terceira informação importante: percebe como a ênfase que se dá ao Apartheid Sul Africano é totalmente diferente da atenção que se dá para o Apartheid Americano? Curioso né…
Voltando…
Tem mais dados para pensar esse negócio. Dizem no discurso que o primeiro juiz negro (no masculino mesmo e não genericamente) da Suprema Corte dos EUA foi o Thurgood Marshall, que compôs a Suprema Corte a partir de 02 de outubro de 1967 e foi até 1º de outubro de 1991 (a coincidência dos meses é só coincidência mesmo, ok.).
Ocorre que eu queria muito que você desse uma olhada no naipe dele (foto da biblioteca da Enciclopédia Britannica):

Thurgood Marshall- Suprema Corte USA 1967 a991.
Fala que não é o tiozinho mais negão que você conhece? Só que não né…
Esse moço aí foi muito importante para a consolidação dos direitos civis da população negra dos EUA, tem uma história maravilhosa neste sentido e um peso tremendo para profundas mudanças institucionais daquele país. Só para ter uma ideia, adivinha quem era o Advogado no caso Brown vs. Board Of Education que eu citei acima? Pois é… ele mesmo.
Agora daí falar que o moço é negro é sacanagem. Ele pode até não ser pálido como o típico branco americano. Ele pode até ser descendente. Tudo bem. Mas vamos parar por aí né?

Clarence Thomas- Suprema Corte USA – a partir de 1991
Aceito críticas e quem quiser discordar eu acho que está tudo bem. Mas dá uma olhada no Clarence Thomas, o juiz que foi indicado e aprovado no Senado em 23 de outubro de 1991, exatamente para substituir o Thurgood Marshall (fonte da própria Suprema Corte dos EUA):
Dá uma comparada! Esse aí sim! Esse tiozinho aí representa o típico cidadão americano afrodescendente. Só que ele é considerado o segundo juiz negro da Suprema Corte. Com a minha devida ressalva, vou considerar que ele é o primeiro. E cada um que tire as conclusões que quiser.
Quarta informação importante: se ele é o primeiro ou o segundo, o que importa é que não tem mais ninguém depois dele na fila!!! Sacou? Independente da sua conclusão, você vai ter que concluir que na história inteira da Suprema Corte dos EUA até 2022 temos ou duas ou uma pessoa negra apenas!
Voltamos…
O caso de agora então toma outro patamar de relevância porque a Ketanji é mulher. Então vamos lá para os dados de novo…
A primeira mulher da História a assumir uma cadeira na Suprema Corte dos EUA foi Sandra Day O-Connor, aprovada no Senado em 21 de setembro de 1981.
Quinta informação importante: Você não leu errado meu consagrado. A primeira vez que uma mulher pisou na Suprema Corte foi em 1981. E se você acompanhar o meu raciocínio acima, somente 10 anos depois (na década de 1990!!!) que um negro pisou lá.
Voltando…
Depois da Sandra (veja o grau de intimidade! Isso deve dar prisão nos EUA, já que é a terra da liberdade), veio a juíza Ruth Bader Ginsburg, aprovada em 3 de agosto de 1993. Isso mesmo… 12 anos depois, veio mais uma.
Vamos acelerar esse processo então? Afinal estávamos caminhando para o fim do século e para a consolidação dos direitos das mulheres! Vamos não. Esse negócio dá muito trabalho e depende de muito homem junto. A chance de dar certo é muito pequena.
Então a terceira juíza foi a Sonia Sotomayor, aprovada no Senado em 6 de agosto de 2009 – ou seja, 16 anos depois. No ano seguinte, entrou a juíza Elena Kagan, aprovada em 5 de agosto de 2010. Mais 10 anos tiveram que se passar para a entrada da juíza Amy Coney Barrett, aprovada em 27 de outubro de 2020.
Quinta informação (nem tão) importante: essa foi a juíza daquela treta toda do Trump indicando uma pessoa para vaga na Suprema Corte que quase não passou. A confusão inteira aconteceu porque lá eles têm a cultura (e eles são cheios de regras não escritas) de não indicar qualquer pessoa para a Suprema Corte em ano eleitoral, pois isso poderia ser usado para benefício eleitoral de quem indica. Pois é. O Trump quebrou a regra, indicou a moça e, obviamente, utilizou essa ação como propaganda eleitoral.
Voltando pela última vez… eu acho.
Ou seja, em toda a História da Suprema Corte dos EUA, apenas 5 mulheres foram aprovadas como juízas. E dessas 5 mulheres, 3 entraram nos últimos 13 anos. Dá para perceber o quão recente é esse negócio? E não precisa explicar (e eu já estou explicando) o óbvio de que todas elas são brancas né…
Pois é. Aí vem a nova juíza Ketanji Brown Jackson. Sim! Simbolicamente, ela é “Brown” como a menina do caso Brown vs. Board Of Education. Mais poderoso que isso é impossível! Dá uma olhada no naipe da moça (isso deve dar muita cadeia lá! Meu pai!) (a foto é do Conjur):

Ketanji Brown Jackson- USA -Suprema Corte -2022
E só para te situar, dando uma sapeada na página do Comitê Judiciário do Senado dos EUA, temos algumas informações interessantes. Alguns Senadores Republicanos (ou seja, da oposição) tentaram desgastar a juíza afirmando que ela defendeu “terroristas” que estavam na prisão de Guantánamo.
Sexta informação importante: lembra de Guantánamo né? Aquele lugar que estava nos EUA, mas não se submetia às leis dos EUA e que os prisioneiros não tinham processo, não tinham sentença e eram torturados cotidianamente para o divertimento de alguns.
Voltando, agora sim, pela última vez.
A tentativa foi em vão e o motivo é bem sintomático: o currículo dela é melhor do que de todos os outros juízes que já integram a Suprema Corte (você não leu errado meu consagrado, todos!). Ela se formou em Harvard, foi Defensora Pública, integrou a Comissão de Sentenças dos EUA (um órgão que não tem paralelo no Brasil e tem função revisora), foi juíza federal de primeira instância, juíza do Tribunal de Apelações e juíza auxiliar na própria Suprema Corte.
Nenhum dos demais juízes da Suprema Corte cumpre essa lista inteira. Ou seja, além de tudo, ela chega lá por mérito e pelo currículo que é inquestionável pela simples comparação entre os currículos dos que já estão lá.
Então agora eu consegui fazer a linha que me interessa para explicar porque raios essa notícia tinha que receber aquela parada na programação com aqueles microfones girando aleatoriamente e a simbólica musiquinha de urgência: a juíza Ketanji é a sexta mulher da História a integrar a Suprema Corte; é a segunda (ou terceira, a depender do seu olhar) pessoa negra a integrar a Suprema Corte; e a primeira mulher negra da História a integrar a Suprema Corte.
Isso é revolucionário por muitos motivos, mas alguns são mais relevantes. Primeiro porque a segregação “racial” ainda é uma chaga institucional recente da nossa história (nossa aqui estou incluindo a nós e a eles); segundo porque a segregação e o preconceito de cor ainda é um mal que assola a nossa sociedade e a nossa cultura; terceiro porque o preconceito contra as mulheres e as barreiras institucionais para que acessem cargos e posições de poder é também uma chaga recente da nossa história; quarto porque o preconceito contra as mulheres e sua capacidade de acessar cargos e posições de poder ainda é um mal que assola a nossa sociedade e a nossa cultura; quinto porque, queiram ou não queiram, gostem ou não, a Suprema Corte dos EUA é a Corte Constitucional mais importante do mundo.
A juíza Ketanji une em uma pessoa algo de um peso simbólico tremendo e traz à realidade aquilo que usualmente se traduz como representatividade. É preciso dizer para as nossas mulheres (e ainda mais para as nossas meninas) que elas realmente podem fazer o que quiser, estar onde quiser, prosseguir na carreira que desejarem, liderarem quem elas quiserem e quantos quiserem, exercer o poder Judiciário, Legislativo e Executivo nos mais elevados cargos, chefiar as maiores e melhores empresas e se colocar de fato em posição de igualdade real.
Para isso, nada mais forte do que se ver no topo pelo espelho de alguém que já está lá. Espero tremendamente que ela seja a primeira de muitas e que em terras tupiniquins possamos aprender com o exemplo e usar as oportunidades que temos para fazer a diferença nos espaços de poder e fazer justiça com as nossas mulheres – ainda tremendamente sub representadas.
Apenas para se ter uma ideia de como isso é grave nas nossas terras, as mulheres correspondem a 51,1% da população e 52,5% dos eleitores, mas tem apenas 15% de representação nos espaços de poder eletivo (ou seja, onde se pode escolher quem está lá). Há algo muito errado e é exatamente essa capacidade de ser ver nesses espaços por quem já está lá que será capaz de mudar essa triste realidade de forma exponencial.
Logo, torçamos por nossas Ketanjis, o País está precisado delas.