Rússia x Ucrânia: a perigosa guerra de discurso em que você é o soldado raso.

A discussão tupiniquim sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia acende um alerta que precisa ser debatido

Depositphotos – tanque

Você provavelmente também constatou recentemente que no grupo de whatsapp da sua família havia uma equipe de especialistas em geopolítica que não foram apresentados antes. Nesta equipe, fortemente amparada por argumentos militares colhidos em outros grupos de whatsapp, havia, também provavelmente, uma certa disputa sobre os motivos do conflito e, mais do que isso, sobre quem estava certo e quem estava errado. E aí temos mais um assunto para que a família brasileira de bem, se engalfinhe virtualmente e comece a fazer julgamentos sobre a idoneidade de certas pessoas que compartilham o mesmo sobrenome (ou pior ainda, quando são os agregados que sequer o mesmo sobrenome tem…). Este assunto rendeu muitas discussões, muitas manifestações (formais e informais), muito compartilhamento e, obviamente, muita desinformação. Pois bem… se você acha que aqui eu vou discutir com você sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia, eu sinto informar, mas por hoje não será possível.

Eu aprendi que gostava de geopolítica na 6ª série do ensino fundamental quando me deparei com os estudos dos biomas brasileiros e do ciclo da água. Era tudo um porre sem fim! Com o perdão e licença dos professores e geógrafos (ainda bem que tem gente que gosta disso!), o sono me tomava completamente e a única coisa que eu era capaz de raciocinar naquelas aulas era sobre a utilidade que meu cérebro teria para o mundo fora daquela sala…

Daí eu perguntei à professora (acreditem, a minha professora de geografia na 6ª série chamava Deusa!), qual era a influência da água nas guerras do Egito e do Sudão, considerando que eu acreditava que esse era o ciclo da água que realmente importava (afinal, esse fazia gente morrer com um projétil ponto 50 na testa). Ela me disse que não era o momento daquela matéria , que isso era geopolítica e não geografia física , haveria o momento adequado para estudar.

Pois é… esperei ansiosamente e o momento chegou, desde então eu sempre me interessei em entender movimentos políticos ligados diretamente à natureza. O Brasil venceu a guerra do Paraguai como venceu por causa de uma ajudinha da geografia. Getúlio Vargas se tornou presidente do Brasil, dentre outros motivos, por uma questão geográfica. Os EUA têm uma federação completamente diferente da nossa, dentre outros, por motivos geográficos. Pois bem, quer entender de política, faz bem manjar um pouquinho de geografia.

E daí? E daí, que mesmo gostando da matéria, eu realmente não tinha a menor ideia do que estava acontecendo na Ucrânia, até o noticiário começar a bombardear a gente com informações desencontradas e as redes sociais serem inundadas com vídeos e fotos com recortes dos fatos. O pior de tudo isso é que a gente é “forçado” pelas circunstâncias a “escolher” um lado, como se estivéssemos em um campo de futebol. Não se engane… isso tem uma motivação (estou falando especificamente de Brasil!): voto.

Foi iniciada uma guerra de discursos para tratar a questão da Ucrânia, que não tem o menor interesse em ser solidário com ninguém, muito menos de realmente se posicionar sobre o conflito em termos técnicos, diplomáticos ou geopolíticos. Nada disso!

O ponto é o seguinte:

O Presidente foi para a Rússia pouco antes do conflito e o fã clube dele precisa conviver com essa informação e tentar defender que a ida tinha uma razão lógica. Para isso, precisa defender a Rússia ou, no mínimo, ficar calado para o que a Rússia está fazendo.

Por outro lado, tem a galera da esquerda e o fã clube dela precisa continuar sustentando o discurso anti-EUA, afinal de contas o imperialismo ianque é a culpa de todo o mal do mundo (inclusive o mal que eu mesmo faço). Para isso, precisa defender a Rússia ou, no mínimo, ficar calado para o que a Rússia está fazendo.

Por um terceiro lado, não dá para o Estado brasileiro ignorar que a Ucrânia é um país soberano e que isso precisa ter valor internacional, sob pena de ameaçar toda a soberania de qualquer país. Então o fã clube do governo precisa condenar a guerra afirmando  ser preciso buscar soluções pacíficas.

Por um quarto lado, a oposição não pode ignorar que a Ucrânia é um país soberano e que isso precisa ter valor internacional, sob pena de ameaçar toda a soberania de qualquer país. Então o fã clube da oposição precisa condenar a guerra e defender que é preciso buscar soluções pacíficas.

Resultado:

Muita gente está dando a mínima para a Rússia e ou Ucrânia. O que interessa é a captura do discurso, preferencialmente o discurso que trabalha sob a premissa ingênua, burra e inexistente da luta do “bem” contra o “mal”. A partir daí, é possível traçar discursos que não conflitem com as necessárias narrativas eleitorais, mas que defendam os próprios interesses. Se tem mais gente morrendo por lá ou não, é um detalhe absolutamente irrelevante para o contexto. Capturando mentes , produzindo o discurso, está tudo bem. Outubro vem aí e é preciso obter benefícios…

A grande falha desse joguete é que cada tio e tia do zap viram um forte instrumento de distribuição massiva de desinformação, aliada a uma análise superficial, rasa e pouco inteligente de questões complexas. E este instrumento é poderosíssimo para o controle do discurso que dominará os palcos (ou palanques) e que servirão de base para cooptar ingênuos novilhos para o abate eleitoral. Quem aglutina um básico de massa crítica já consegue superar essa ingenuidade de que alguém é mocinho e alguém é bandido. Não há mocinhos no jogo , entender isso é peça fundamental para conseguir fazer uma análise minimamente racional do contexto. Quem paga de mocinho, quem defende outro sob o argumento de que é mocinho, é ingênuo ou está de má-fé. Eu sempre aposto na segunda opção… Por sua vez, quem acredita que exista um mal em si a ser combatido, também está navegando na ingenuidade ou na má-fé. E novamente eu sempre aposto na segunda opção…

Em um segundo momento, é preciso superar também a ideia de que realmente detemos conhecimento suficiente para dar um parecer sobre o que está acontecendo. Temos o conhecimento possível  conhecimento que é, de longe, muito limitado , altamente tendente ao erro. Vivemos em um país que: não sabe as funções do seu Poder Legislativo;  acha que o Presidente “manda” no país;  não sabe explicar o que significa coeficiente eleitoral;  acha que o STF deve ser um órgão jurisdicional puro, ainda que isso não exista em qualquer lugar do mundo ocidental;  acha que “direitos humanos” são instrumento de favorecimento de bandido;  acha que o IPVA serve para consertar e construir estrada… tudo bem, parei porque a do IPVA dói demais para prosseguir…

Ou seja, não fazemos o nosso dever de casa mais elementar! Não sabemos o nosso feijão com arroz! Sem conhecer o próprio quintal nos arvoramos em discutir o quintal alheio que está a milhares de quilômetros daqui e fala uma língua que parece o jogo de lego da minha filha!

Se parar para pensar, é de um ridículo que deveria ruborescer o mais cara de pau dos estelionatários! De todo modo, lembremos que o importante não é a Rússia ou a Ucrânia, mas o seu voto. Não se esqueça que esta não é a guerra da Rússia e da Ucrânia, mas sim pelo seu voto. E nesta guerra, o dono do voto não passa de um soldado raso, aquele denominado de terceira classe. Ele é a linha de frente e, por isso, é o que tem o maior potencial de perder a vida. É descartável… não é um ser humano na sua completude. É apenas uma ferramenta útil como instrumento para interesses maiores.

Cada um que entra nesta guerra de discurso, precisa saber que está se alistando voluntariamente em um exército, cujo comando não terá rubor em aquiescer com o seu sacrifício para alcançar maiores fins. E por trás de tudo isso está um dos elementos mais importantes de tudo, que vem sendo laconicamente ignorado (afinal é conveniente ignorar): toda democracia é frágil!

Cultivamos a fé de que: temos uma democracia;  uma constituição; temos instituições de Estado;  temos leis; convivemos em ambiente internacional de forma harmoniosa. É um ato de fé, pois não existe qualquer garantia de que isso seja verdade. Com o discurso sustentado por aí, concordamos  ser razoável entender que a qualquer momento é factível sim, que nosso território seja invadido por outro país por uma causa nobre maior. Aos defensores do “anti- EUA” e, por vias transversas, defensores da Rússia, o Brasil também é quintal dos EUA há décadas e, logo, não há porque não concluir ser razoável invadir nosso espaço também.

Eu, particularmente, defendo a Ucrânia não porque a Ucrânia é legal e seu povo é pacífico e democrático. Eu sei lá o que tem na Ucrânia? Eu defendo a Ucrânia porque preciso (lembra que é um ato de fé!) ainda acreditar que a soberania dos Estados deve ser respeitada para que a soberania do Brasil também seja respeitada.

O Brasil tem um poderio bélico que é digno de risos. É absolutamente incapaz de suportar qualquer ofensiva por mínima que seja. Estamos completamente à mercê da vontade alheia.

Ao paquiderme do grupo do WhatsApp da família que pergunta “e para que serve a ONU então?”, é preciso esclarecer que não existe um governo do mundo ou tribunal do mundo. No âmbito internacional prevalece a anarquia (agora o cidadão de bem deu aquela estremecida, mas é verdade. Desculpa aí…), de tal modo que inexiste lei, regra ou estrutura superior. No âmbito internacional vale a lei do mais forte e neste canil, somos gazelas rodeadas de leões sem alimento por muito tempo… Ou seja, estamos na ponta do espeto de churrasco  achando que temos parte no banquete, mas somos o jantar!

Defender a soberania de qualquer país é mais do que um ato democrático, mas um ato de egoística sobrevivência internacional!

O problema é que tem tanta gente só interessada no próprio umbigo , no seu voto, que é incapaz de ser coerente com a defesa da própria pele (e da minha, que é algo muito importante para mim!),  incapaz de enxergar poucos palmos à frente. Na prática, isso significa uma coisa: estudamos muito o ciclo da água na escola (que é importante), mas negligenciamos bastante a geopolítica.  Nesta negligência, colocamos em risco, a nossa segurança, a nossa democracia  e a nossa soberania à mercê da vontade de qualquer um que tenha arsenal suficiente.

O pior disso tudo é que os mais vulneráveis nesta fogueira são os que hoje estão carregando as piras que as alimentam. E como em um bom jogo de xadrez, os soldados rasos são os peões. São pequenos, fracos, se movem lentamente e servem, de regra, de escudo, para sacrificar a própria vida e assim garantir a integridade da corte…

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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