Eis mais uma daquelas perguntas que deviam ter respostas óbvias, mas que muita gente não sabe responder…
Estamos em período eleitoral e como em todas as eleições gerais teremos amplos debates sobre a segurança pública do país. Nos grupos de whatsapp da família pululam especialistas em segurança pública formados nos grupos de whatsapp do futebol , do boteco (e porque não da outra família, mas normalmente este diploma não é postado). De toda forma, estes espaços de debate acadêmico sempre colocam em questão a fragilidade da nossa segurança pública e, obviamente, acabam por culminar em severas críticas ao Poder Judiciário que vive soltando “marginais” para atacar inocentes cidadãos nas ruas ou “corruptos” para continuar a saquear cofres públicos. Essa eleição tem um tempero ainda mais intenso neste tema, pois um dos possíveis candidatos foi exatamente juiz criminal e tem um discurso que fomenta bastante estas ideias de que o juiz deve ser um agente de combate à criminalidade.
Chama bastante a atenção, como os apoiadores de Sérgio Moro ou de suas ideias têm uma concepção muito clara sobre o papel do Poder Judiciário em face da criminalidade (especialmente a corrupção): o Poder Judiciário deve ser uma máquina de combater a corrupção, tornando-se um agente de “limpeza” pública contra malfeitores da sociedade. Um Judiciário que solta (e Sérgio Moro é um crítico veemente de decisões judiciais que soltam quem quer que seja), é um Judiciário “fraco”, leniente com a criminalidade.
Pois bem… vamos tentar pensar para além da nossa famigerada torcida do “discurso político futebol clube”. Observação: é impressionante como me assusta ter que discutir posicionamento político em relação ao Poder Judiciário… mas vamos lá.
Voltemos. Eu agora vou contar um segredo muito instigante para muitas pessoas que, de forma muito impressionante, causa efusivos espantos nas salas de aula na cadeira de Direito Processual Penal da graduação em Direito: juiz não combate a criminalidade. Vou repetir, só para firmar a premissa: um juiz criminal não tem por atribuição constitucional, legal, institucional e qualquer outro “al” que você quiser, o combate a qualquer criminalidade.
Observação 2: essa é a hora que a turma, bem doutrinada pelo Datena e cia, te olha com olhos arregalados e aquela cara de “o professor amalucou de vez”. Mas explico lá. E vou tentar te explicar também…
Voltemos. A questão da segurança pública, assim como a maioria das demandas sociais, são atribuição do Poder Executivo. Manter a segurança pública é uma função ativa, de quem deve agir de ofício , sem a necessidade de qualquer pedido anterior. Não por outro motivo, as polícias estão vinculadas ao Poder Executivo.
Nós sabemos que existe uma parcela imensa de fatos criminosos que sequer vêm à luz do dia. Ou seja: uma infinidade de crimes compõe o que os criminólogos chamam de “cifra oculta”. Estamos tratando aqui da criminalidade que não é vista e, por isso, não é investigada e muito menos punida. Entre a criminalidade que é investigada, há um canavial de fatos que entulham as nossas delegacias de polícia civil e federal.
Observação 3: Devia ser matéria obrigatória na escola uma visita a uma delegacia para entender do que eu estou falando…
Retomo. Aí, dentre a parcela que é investigada, é preciso que se reúna o básico de elementos iniciais para mandar para outro agente público.
Pode falar que você já pensou no Judiciário né? Mas não é. Depois dessa primeira “filtragem” (forçada pelas circunstâncias), esse material todo vai para o Ministério Público. O Ministério Público é titular da ação penal. Esse nome bonitinho nada mais significa, que o Ministério Público é que decide se vai ou não denunciar alguém e por qual fato (inclusive o pacote anticrime assinado pelo Sérgio Moro deu ainda mais autonomia para o Ministério Público neste sentido – e isso não é uma reclamação).
É essa denúncia que chega ao Poder Judiciário. Ou seja: o Poder Judiciário recebe o filtro do filtro dos fatos que acontecem no mundo da vida. E até esse momento o Poder Judiciário não tem atribuição alguma com a questão da segurança pública! Então, só para começar, não é crível responsabilizar o Poder Judiciário sobre algo que ele sequer tem condições de tomar conhecimento. Logo, é preciso tirar das costas do Judiciário o que “acontece na rua”, pois o Estado Juiz não fica na rua, mas à espera da provocação (é esse nome técnico mesmo, não leve para o lado pejorativo), dos agentes processuais que estão efetivamente na rua.
Pois bem, você deve estar pensando aí que o problema não é esse, mas quando o Judiciário “solta” alguém. Certo, esse é o segundo ponto. E tem muito para tratar aqui.
Compreendido que o Judiciário recebe um recorte muito selecionado dos fatos que acontecem na vida, podemos passar para a segunda reflexão. E ela parte de um raciocínio muito simples: se você acha que é razoável compreender que alguma pessoa já foi processada indevidamente e, por isso, foi absolvida, já andamos mais de 50% do caminho. Se você acha que quem foi processado é porque é vagabundo mesmo e tem que ser punido das formas mais atrozes, aí nosso diálogo vai ficar um pouco mais truncado.
Mas mesmo assim eu vou tentar.
Pensa comigo: nós, como cidadãos, estamos sujeitos ao poder do Estado. É uma opção pela via democrática e para permitir uma vida social mais suportável. Eu, que sou baixinho e magrelo, preciso acreditar que o Estado me ampara. No ambiente em que vige a lei da força eu morro muito rápido e a intenção não é essa…
Se é assim, a gente precisa compreender que os agentes estatais responsáveis pela segurança pública em nome do Estado (que não incluem os membros do Poder Judiciário) são passíveis de erro. Puxa da memória e você vai lembrar de alguém que teve seu nome representado como criminoso indevidamente por causa de uma vingança pessoal; ou aquele que foi confundido por semelhança física; uma pessoa que teve seu documento falsificado e este documento foi usado em uma fraude… os exemplos são inúmeros. Eu estou querendo te mostrar que os agentes de segurança pública não são malucos que querem a cabeça de inocentes por sadismo. A questão é que fazer o que eles fazem, na condição que fazem, gera inexoravelmente a possibilidade de erro.
Agora soma aí o fato de que ainda que alguém tenha cometido um fato criminoso, é preciso saber em quais circunstâncias o fato foi cometido, qual a situação pessoal do agente criminoso e quais elementos devem ser sopesados para se avaliar a responsabilidade criminal deste agente. E esse papel é do juiz!
E sabe porque esse papel é do juiz? Exatamente porque ele não tem a atribuição de combater a criminalidade!!! É por isso que ele tem condição de ser imparcial! O juiz só consegue a sua imparcialidade porque não tem (e não deve ter!) interesse em condenar ou absolver ninguém, mas avaliar a prova juntada aos autos pelas partes e analisar se existe ou não responsabilidade.
E se existe responsabilidade, o passo seguinte é aplicar a penalidade proporcional ao tipo de crime que foi praticado. É importante frisar que essa proporcionalidade não é uma avaliação subjetiva do juiz, mas fruto da aplicação de critérios que são previstos em lei. É a lei (e não o juiz!) que estabelece o que deve ser avaliado de forma positiva ou negativa e ainda estabelece os percentuais (e tem uma galera que entra no curso de Direito achando que ia ficar livre de conta ou só ia ver conta em Tributário – que, por sinal, não tem conta).
Junta com isso tudo a ideia tão absurdamente antiga e conhecida como não aplicada de que é preciso passar por um processo para saber isso tudo. Como é que o juiz vai avaliar se o miserável do réu tinha alguma circunstância que reduz a sua responsabilidade (ou elimina) ou alguma outra que agrava se não for depois do processo? Não entender isso é querer que tenhamos juízes adivinhos, o que é tão nonsense quanto perigoso. Você confia em um médico que avalia, diagnostica e medica sem fazer um único exame? Acredito e espero que não! Então por que as pessoas querem que o judiciário prenda sem fazer o exame… das provas?
E aí que a gente entra no terceiro item e, obviamente, o mais delicado. Alguém pode estar pensando: o Hudson está tentando defender o Judiciário, mas esquece que tem aqueles casos absurdos, onde o criminoso é pego com a “mão na massa” e ainda não fica preso. Esses não tem justificativa.
Pois é, explicar isso as vezes é cansativo, mas é preciso. Volta umas casas acima e lembra que não dá para julgar por adivinhação. O famoso flagrante é um recorte efêmero da realidade e só quem já conviveu com o dia a dia do processo sabe como essa urgência induz a conclusões precipitadas que, naquele contexto, são válidas e ao final do processo se mostram muito diferentes. Acreditar no flagrante é acreditar que é correto agir com a emoção e não com a razão. Ocorre que o processo criminal deve fazer parte de um projeto civilizatório e deve ser conduzido de forma civilizada. Para isso há regras! O que torna o ambiente do processo, e por consequência o ambiente da Justiça, diferenciado da “realidade da rua” é que o processo é civilizado.
Se o Judiciário não respeita as regras, qual a diferença entre o julgador e o julgado? A posição das cadeiras? Percebe como não faz sentido acreditar que é válido flexibilizar regras para pegar alguém específico ou para prender mais rápido?
Vivemos a era da vida fast food! Tudo é para ontem. As pessoas querem soluções imediatas, ainda que estejam diante de situações complexas. E o Judiciário não pode se contaminar por esse fervor que está muito distante da racionalidade para o bem de todos, incluindo das pessoas que querem emplacar no Judiciário esse espírito de competição e caçada. O interessante é que as prerrogativas do Judiciário servem exatamente para garantir que não haja qualquer interferência dessas paixões. O Judiciário (ainda bem!) não tem voto, não se justifica perante a imprensa ou a população. A obrigação do Judiciário é perante a lei e a Constituição, ainda que a contragosto da maioria.
O Poder Judiciário é exatamente o contrapeso para equilibrar o perigo da ditadura da maioria. O processo civilizatório é complexo e tortuoso e o Judiciário se coloca (e deve se colocar) como poder estável , muitas vezes indiferente às intempéries da vida social e principalmente política. O tempo do processo é o tempo da racionalidade, da maturidade da percepção e da tentativa (reconhecidamente complexa) de fazer um recorte um pouco mais preciso de toda a conglobância de um fato para avaliar a responsabilidade de alguém.
É cruel, antidemocrático e perigoso atribuir ao Poder Judiciário a responsabilidade por combater a criminalidade. É cruel porque é impossível, visto que apenas uma parcela dos fatos da vida chega ao Judiciário e dentre os que chegam muitos não trazem todos os elementos para avaliação do recorte que se pretende.
É antidemocrático porque o combate à criminalidade é uma medida de caça, ou seja, uma ação ativa, o que contraria a função base do Poder Judiciário, que é o distanciamento e o “desinteresse” pelo resultado. O policial e o Ministério Público são parciais por natureza e isso nunca foi um problema. Pelo contrário! É imprescindível que haja uma estrutura de busca ativa para expor fatos criminosos.
Não quero dizer com isso que esses agentes tenham a intenção de punir indevidamente pessoas, mas que essas funções permitem certa “contaminação” por um viés cognitivo – até porque haverá (ou deve haver) o anteparo deste viés com a imparcialidade judiciária. O problema é querer levar o Judiciário também para este espaço “interessado” em combater a criminalidade, pois este espaço é inexoravelmente contaminado por este viés cognitivo.
É perigoso porque essa busca idealizada (e, por vezes, ingênua) de uma utópica “justiça contra os maus” leva à flexibilização das regras e fragilização da democracia. Como dito, se é possível quebrar as regras para fazer “justiça contra os maus”, o que vai diferir o Judiciário dos maus? E mais, quem vai definir quem são os maus?
Há alguns mal intencionados tentando levar essa carga e essa tensão (que têm natureza política) para o processo e isso presta um imenso desserviço para o desenvolvimento civilizatório do processo. E no atual contexto, entramos em uma perigosa estrada onde decisões judiciais são comemoradas ou criticadas pela satisfação pública dos seus efeitos e não pela sua correção e adequação jurídicas. O problema deste viés é perder-se de vista que o Judiciário não tem que “assumir um lado”, mas cumprir as suas funções institucionais. O cidadão pode avaliar e criticar as decisões judiciais, mas não se enfurecer ou envaidecer porque o Judiciário decidiu favorável ou desfavoravelmente ao seu inimigo político. Até porque este tipo de postura fomenta a caçada a inimigos que todos os regimes autoritários se basearam. E o risco de fomentar este discurso é se tornar, sem querer, o inimigo a ser caçado. E neste caso, fica a pergunta: se você for a caça, gostaria de ser julgado por um caçador?