O recente episódio do interrogatório do PR levanta questões interessantes para os debates que se seguirão esse ano.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/bolsonaro-diz-a-pf-que-exerceu-direito-de-ausencia-ao-faltar-a-depoimento.shtml
Recentemente o PR foi intimado para comparecer em um interrogatório conduzido perante o STF e, na data marcada, enviou um correspondente e avisou que não iria.
Rapidamente os grupos de whatsapp da família começaram a bombar com o tema e a dinâmica é sempre a mesma: tem a galera que é contra o PR e o chamou de covarde e outros adjetivos desta ordem; tem a galera que é a favor e disse que o STF (mais especificamente o Min. Moraes) é autoritário e está perseguindo o PR.
Cada torcida do seu lado do estádio, vamos à disputa de quem grita mais! Berro para um lado, berro para o outro, tiro, porrada e bomba. Pronto, acabou a rinha pública e agora a gente vai catar uns pedaços, uns bêbados pelo caminho, limpar uma sujeira aqui e ali e tocar adiante sem sequer entender o que estava acontecendo.
Sabe o porquê? Porque no Brasil política já é futebol há muito tempo. Agora o Direito também entrou no campeonato e as disputas jurídicas são realizadas de acordo com a maior torcida do momento.
Pensar? Entender o motivo de X ou de Y? Que bobagem, o lance é dar uma grita, chamar o “oponente” de burro, a depender do lado chama de “bolsominion” ou de “petralha” e passa o dia batendo boca e postando fotos com frases de efeito no grupo da família. E assim a gente vai tocando a nossa vida jurídica que dispensa adjetivos…
Tentando se afastar dos grupos da família (ando recomendando isso para todo mundo, principalmente esse ano…) vale a pena refletir um pouco sobre esse negócio. Tem muita informação interessante para levantar e para mostrar o óbvio: como em toda disputa de futebol, todas as torcidas estão retumbantemente erradas. E estão erradas porque torcedor não pensa, ele sente, é passional e não admite que exista mundo além do escudo que tampa o seu próprio umbigo.
A primeira coisa a dizer sobre essa pataquada toda é a seguinte: um interrogatório policial (durante um inquérito e que, por isso, ainda não é um processo) serve para ouvir o acusado sobre a acusação que lhe é feita. Ele pode falar o que quiser ou pode calar.
Aqui estamos diante do ápice da aplicação do famoso “Aviso de Miranda”. Sabe onde surgiu esse negócio? Para desespero daqueles que acham que bandido bom é bandido morto e para desespero daqueles que adoram reportar os abusos ianques, o tal aviso nasceu nos EUA. Um ser humano (o tal do Miranda) foi absolvido pela Suprema Corte dos EUA porque foi condenado com base em uma confissão que fez sem ter sido informado que tinha o direito de permanecer em silêncio.
Sacou? Ele confessou o crime e foi absolvido! E foi absolvido porque não teve a oportunidade de ficar calado. Isso aqui é importante: o acusado não pode atrapalhar as investigações, mas não é obrigado a colaborar (a não ser que aceite negociar um pequeno prêmio por isso…). Daí porque é óbvio que se ele não precisa colaborar ele pode simplesmente não falar nada e isso deve ser interpretado de forma neutra.
Mas Hudson, quem cala consente? Meu consagrado, experimente se sentar na frente de um delegado armado, que acha que você é um verme e deve ser extirpado da vida em sociedade e você, que nunca furtou um pão de queijo na vida, vai ter dificuldade de ser coerente e se defender. Sejamos realistas…
Logo, não ir a um interrogatório nada mais é do que exercer o direito ao silêncio! Não vou porque não quero falar nada e não estou interessado em colaborar com investigação alguma. Querem me acusar, que acusem! Se virar processo, tenho direito a todos os elementos defesa que a lei me garante e confiemos no Judiciário, que é o último refúgio do cidadão (não briguem comigo, é verdade).
Qualquer coisa diferente disso, como havia o entendimento de que o acusado tinha que comparecer para informar que iria exercer o direito ao silêncio, é formalismo retardado (que não serve para nada) ou mero exercício de sadismo da autoridade. Você pode até não falar nada, mas vou te obrigar a comparecer aqui e passar pelo crivo dos olhares julgadores daqueles que não têm competência para julgar nada (competência no sentido técnico por favor…). Desculpem-me os delegados, mas é assim que funciona em muitos casos – e ainda bem que com muitas e honrosas exceções.
Plot twist que me interessava (afinal de contas, de que vale um textão desse sem uma pegadinha…):
Você meu amigo bolsonarista que acabou de concordar comigo e achou vários argumentos para lançar no grupo da família e demonstrar o sadismo do Min. Moraes e as ilegalidades do inquérito contra o PR, acabou também que concordar que a condução coercitiva do ex-presidente Lula foi ilegal!

http://jornalocal.com.br/site/wp-content/uploads/2016/03/lula-preso-operacao-lava-jato.jpg – Lula é alvo da Lava Jato e é levado para depor à PF em Congonhas
Afinal, ele foi intimado para um interrogatório (igualzinho né?) e não queria comparecer. E o que foi feito? Cataram ele na marra para ir na frente do delegado dizer que ficaria em silêncio… Vai lá meu caro bolsonarista, defende o Lula. Defende que o cara foi vítima de abuso judicial e policial.
Agora é sua vez meu amigo lulista, que acabou de me execrar, chamar de bolsominion e dizer que eu estou passando pano para o PR covarde. Agora você também vai ter que concordar que a condução coercitiva do ex-presidente Lula foi legal, adequada e pertinente.
Afinal, ele foi intimado para um interrogatório (igualzinho né?) e não queria comparecer. E o que foi feito? Cataram ele na marra para ir na frente do delegado dizer que ficaria em silêncio… Vai lá meu caro lulista, ataca o Lula. Fala que foi mais do que merecido, pois não dá para aceitar esse tipo de covardia.
Plot twist 2:
E sabe qual é o mais legal de tudo isso? O juiz era o Moro! O mesmo Moro que agora está reclamando de umas investigações que está sofrendo, reportando abusos e ilegalidades (afinal de contas, agora ele quer voto e isso depende de uma certa imagem pública).
Então, se você for um torcedor do Moro, a sua situação é tão complicada quanto. Se você fala que o Moro estava certo com a condução coercitiva do Lula, tem que concordar com quem está ao lado do Lula hoje (afinal, quem não vai é covarde…). Agora, se falar que o Bolsonaro está certo em não ir, tem que concordar que o Moro cometeu uma ilegalidade quando era juiz! E até onde conste nos escritos, paladinos da justiça e da moral não têm registros de erros…
Nossa… eu realmente estava querendo chegar neste ponto!
A partir dessas premissas, chegamos ao dilema do torcedor… O problema de ser torcedor é que é muito fácil puxar o seu tapete pela incoerência. Afinal, torcedor é torcedor e não quer saber da verdade, mas da vitória do seu time: mesmo que para isso seja preciso ignorar o passado.
O grande ponto de trazer torcidas futebolísticas para a política e para o Direito é que a incoerência te pega pelo pé quando você menos esperar.
Se você simpatiza com o Bolsonaro, pode falar que ele tem direito ao silêncio e não precisa ir a um interrogatório que não concorda. Mas se você não estende esse direito para o Lula, então você está admitindo que existem seres humanos de categorias diferentes e que por isso quem está no poder pode decidir quem tem direito e quem não tem.
Se você simpatiza com o Lula, pode falar que ele foi vítima de ilegalidade quando foi conduzido coercitivamente para um interrogatório que não tinha obrigação de ir. Mas se você não estende esse direito ao Bolsonaro, então você está admitindo que existem seres humanos de categorias diferentes e que por isso quem está no poder pode decidir quem tem direito e quem não tem.
Se você simpatiza com o Moro, pode falar que ele tem todo o direito de reclamar das investigações que vem sofrendo hoje por serem ilegais e abusivas. Mas se você não estende esse direito ao Lula e ao Bolsonaro, então você está admitindo que existem seres humanos de categorias diferentes e que por isso quem está no poder pode decidir quem tem direito e quem não tem.
O grande problema dessa incoerência futebolística no Direito é que a gente ganha direito e perde direito, tem mais direito ou menos direito, é mais gente ou menos gente, a depender do nível de simpatia e amizade que temos com quem está no poder. Não tem jeito de dar muito certo né…
Por uma questão de coerência, eu preciso dizer que o Bolsonaro está correto e não fez absolutamente nada além de exercer um direito fundamental ao não ir ao interrogatório para o qual foi convocado. Por uma questão de coerência, eu preciso dizer que o Lula foi vítima de ilegalidade por não ter tido a mesma escolha quando do seu interrogatório. Afinal, amanhã o intimado para ser interrogado pode ser eu e particularmente não estou interessado em contar com a sorte de ser simpatizante de quem está no poder para conseguir garantir o meu direito ao silêncio.
Meu dileto bolsonarista, isso tem nome: direitos humanos e todo mundo tem direito de exercê-los, inclusive o Lula.
Meu dileto lulista, isso tem nome: direitos humanos e todo mundo tem direito de exercê-los, inclusive o Bolsonaro.
Meu dileto morista, isso tem nome: direitos humanos e todo mundo tem direito de exercê-los, inclusive o Moro, o Lula e o Bolsonaro.
E por isso, com imenso prazer, eu pretendo ter conseguido melar todos os seus argumentos para postar no grupo da família. E se tudo der certo, a ideia é deixar todo mundo constrangido e resmungando porque não precisa gritar mais alto para demonstrar como que a torcida é burra enquanto se olha no espelho.