O ingresso de discursos religiosos no âmbito político tem mostrado como a defesa do Estado Laico é a maior defesa das religiões, apesar de alguns quererem afirmar ser o contrário.
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https://www.atribunarj.com.br/vereadora-quer-pombagira-maria-mulambo-como-protetora-de-niteroi
Recentemente foi amplamente divulgado um vídeo registrado na Câmara Municipal de Niterói/RJ, onde ocorreu uma discussão surreal entre vereadores (amplamente apoiada por outras pessoas) contra uma proposição legislativa que visava instituir Maria Mulambo como protetora de Niterói.
Para quem não é muito habituado, Maria Mulambo é uma pombagira, ou seja, uma entidade espiritual que se manifesta por meio de médiuns e, no plano das religiões de Umbanda e Quimbanda, tem status de orixá. Desde já, me perdoem os estudiosos por este leigo se meter a explicar aquilo que não tem capacitação para tanto, mas é preciso explicar de onde surgiu a confusão. Não deve ser muito difícil concluir que a proposição partiu de uma parlamentar umbandista.
Aí, colocada a questão em votação, outros vereadores e apoiadores me veem com essa:
“Jesus Cristo é o Senhor de Niterói!”
“Xô Satanás!”
“É um abuso contra a população!”
“Vai embora, macumbeira!”
“Satanás!”
“Demônio!”
“Capeta!”
“Tá repreendido, seu babaca!”
“O meu posicionamento é que está repreendido, para na porta do meu gabinete, está repreendido!”.
E aqui começa a minha avaliação… Obviamente, a questão é sempre muito mais complexa do que parece , por isso, alguns pontos precisam ser destacados.
Primeiro, o projeto em questão para instituir Maria Mulambo como protetora de Niterói é válido? Tecnicamente sim, dado que não se trata de subsidiar ou subvencionar qualquer religião por parte do Estado. Parece tecnicalidade, mas não é. E para explicar é preciso entender que raios significa um Estado ser laico.
Estado Laico é o Estado que não possui religião oficial e institucionalizada em sua estrutura. É o Estado que não persegue ou criminaliza qualquer manifestação religiosa e (ou seja, são requisitos cumulativos) não privilegia ou presta subsídios para qualquer manifestação religiosa.
Isso não tem qualquer relação com reconhecer ou tratar de temas religiosos, dado que não é possível ignorar que existem múltiplas religiões e que elas fazem parte da nossa constituição como sociedade e cultura. Caso contrário, todos os feriados religiosos , menções a padroeiras e coisas que o valham seriam incompatíveis com o Estado. Ou seja, é preciso esclarecer essa ideia de Estado Laico. Essa condição não torna o Estado ateu ou contra religiões, mas garante que o Estado não interferirá nas manifestações religiosas de qualquer pessoa (seja para subsidiar ou para embaraçar o seu funcionamento).
Infelizmente, o que vemos é o contrário. Tentativas continuadas de usar a máquina pública para “facilitar a vida” de determinadas segmentações religiosas e tantas outras para limitar e impedir as normais e legítimas manifestações de tantas outras religiões.
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https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-hipocrisia-contra-as-religioes-africanas-foi-sacrificada-793/
No cerne de tudo está um fato que precisa ser analisado: o grotesco e injustificável preconceito religioso que impera no Brasil. A manifestação religiosa no Brasil, notadamente cristãs (especificamente algumas evangélicas), está se tornando cada vez mais agressiva. Assimilou-se um discurso excludente, violento e nada acolhedor com absolutamente qualquer coisa que seja diferente daquilo que não espelhe na totalidade aquilo que seus representantes entendem que é o correto. A diferença não é só desrespeitada, mas combatida, marginalizada, violentada e submetida a comemorações a cada baixa que sofre.
É o culto da dor, do sofrimento, da rejeição, da exclusão e da violência. É a ação continuada com o objetivo de fazer prevalecer pela força um modo de vida em detrimento dos demais e não em harmonia com os demais. Para isso, ampliou-se a ação das máquinas de propaganda (materializadas em programas de TV, rádio e publicidade) para o uso da máquina do Estado como mecanismo de imposição de uma visão de mundo, em detrimento das milhares de visões que existem simultaneamente no mundo.
Absolutamente qualquer coisa diferente desta visão única de mundo que conviva em sociedade (ou seja, absolutamente tudo), deve ser combatido como uma ameaça. Não é questão de não participar ou de não se sentir compelido a apoiar, como seria em qualquer ambiente democrático, mas de uma necessidade de combater e eliminar. É um discurso de guerra! É belicoso do início ao fim e visa, como em toda guerra, eliminar um “oponente”.
O curioso é que, como em toda guerra, quem se mata não se odeia, não se conhece e nem tem nada um contra o outro. Não há incompatibilidade, mas apenas o acatamento de ordens superiores (estas sim, interessadas) a serem cumpridas de forma cega e sem qualquer questionamento quanto ao seu sentido. E nesta toada percebemos o absurdo do caso que relatei no início desta reflexão. As religiões de matriz africana (Umbanda e Quimbanda) jamais negaram a figura de Cristo! Pelo contrário, nelas Cristo é reverenciado como um espírito de superior evolução e protetor da terra. Ou seja, não existe qualquer incompatibilidade de discurso e tampouco ameaça de uma a outra. Então porque o preconceito? Ora, essa aí eu acho fácil de arriscar a resposta.
Os povos escravizados no Brasil trouxeram, junto com a sua dor e roubo de dignidade, as suas manifestações religiosas (e isso não há pau de arara que seja capaz de tirar). Logo, essas manifestações ficaram evidentes e incomodaram os senhores de escravos, pois seres sem alma (afinal, alma é um atributo exclusivamente cristão europeu) estavam colocando em cheque, bem no quintal da casa grande, a validade do Deus europeu. Era preciso fazer alguma coisa. A resposta veio rápido: vamos criminalizar absolutamente qualquer coisa que não seja o cristianismo europeu. Assim a Constituição de 1824 institui que o Brasil tem como religião institucional (ou seja, do Estado) a Religião Católica Apostólica Romana. Em bom português: se não encaixar aí dá problema com a polícia.
E tudo o que derivou dessas religiões também foi criminalizado (como as curas espirituais e a capoeira). Junto com isso, instituiu-se um massivo discurso de “demonização” dessas religiões, no sentido de disseminar a ideia de que tudo que delas deriva é algo ligado a “forças do mal” e que, por isso, são uma ameaça às “pessoas de bem”.
Mesmo quando já não era mais possível manter a criminalização, o preconceito já estava instalado nestes termos. E até hoje se percebe o evidente preconceito constituído nestes termos. Se experimentar dar um google sobre o tema, vai encontrar resultados escabrosos, como os de uma criança apedrejada na rua porque estava trajada com vestimenta característica da umbanda.
Sacou? Apedrejada! Não… não foi na Idade Média. Foi há poucos anos!
E sabe o que é mais surreal? Não existe um único fundamento na doutrina cristã que manda perseguir outras religiões! Pelo contrário! Os cristãos foram duramente perseguidos pelo Império Romano no início da sua constituição como religião. Vários foram exterminados pelo simples fato de serem cristãos.
A doutrina cristã do Novo Testamento é a doutrina da tolerância. A figura de Jesus era a de um típico pária da sociedade. Esteve ao lado de todas as minorias execradas publicamente. Voltasse Jesus à Terra, como prega o cristianismo para algum momento, fatalmente ele se instalaria em um acampamento do MST, abraçaria os membros da Comunidade LGBTQIA+, almoçaria em um presídio com criminosos (ou não) condenados e pregaria em um terreiro de umbanda com os pés descalços no chão de terra.
E porque então as pessoas que dizem falar em nome dessa figura exaltam figuras que vivem em palácios, se deleitam com banquetes reais e destilam tanto ódio contra essas minorias? Talvez porque sejam apenas soldados inocentes, desses que são soltos para morrer na guerra, sem entender o porquê e sem perceber que o inimigo não tem absolutamente nada que o transforme, de fato, em uma ameaça.
A guerra, no entanto, como toda guerra, beneficia alguns, normalmente os tomadores de decisão. Estes, por sua vez, de regra estão em palácios, se alimentam fartamente e nenhuma relação têm com as premissas da fé que propagam, mas apenas com os próprios interesses. Eis aí o cerne de toda a questão.
O pior é perceber que todo este cenário é fartamente subsidiado pela máquina do Estado e que todos, independente da religião, são financiadores destas violações constitucionais. Se isso não te incomoda agora, provavelmente é porque a sua religião oficial está contemplada no predomínio. A pergunta é se a falta de incômodo prevalecerá se este cenário se alterar.
Ah… só para finalizar: os vereadores que se manifestaram daquele jeito agressivo em nome de Jesus, leem um trecho da Bíblia cristã todos os dias antes do início das sessões da Câmara Municipal de Niterói. E aí fica a pergunta, copiada de um trecho da música “Mandume” do Emicida: “E quem é o diabo perto do homem que matou em nome de Deus?”.