Lázaro Barbosa: a ficção, a realidade, o espetáculo e o surrealismo jurídico-brasileiro

A caçada e a morte de Lázaro traduzem com espantosa clareza o cenário de catarse coletiva que vivemos e a dificuldade de separar realidade de ficção.

Esse texto foi difícil de escrever, então é preciso destacar algumas premissas.

Premissa 1: Sabe aquele povinho dos Direitos Humanos? Então, faço parte desse povinho.

Premissa 2: Por paradoxal que possa parecer, apesar de fazer parte do povinho dos Direitos Humanos, eu não defendo a criminalidade, mas o fato de que criminosos são seres humanos como eu e você (independente de o criminoso estar na sarjeta ou na Presidência da República).

Premissa 3: Esse texto foi inspirado no livro “As misérias do Processo Penal” do Francesco Carnelutti, edição de 1995. Eu não tenho a menor ideia de quando a primeira edição foi escrita, mas considerando que o autor morreu em 1965, vou partir do pressuposto de que o texto tem, no mínimo, 56 anos.

Premissa 4: O ser humano tem muita dificuldade de fazer análises simples porque está o tempo todo sobrecarregado de informações previamente formatada com juízos de valor disfarçados de fatos. A fonte desta afirmação é a minha “inteligência pura”, como diz o meme. Entretanto, vou tentar provar.

Olha essa imagem:

Imagem foi retirada de uma publicação de Ataualpa A. P. Filho da Folha Piauí do dia 03/09/2019- Autoria desconhecida.

Responda com sinceridade e antes de continuar a ler o texto, o que você vê?

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O Espaço era só para dificultar a sua cola no parágrafo seguinte.

Agora eu vou te dizer o que tem nesta imagem: Dois homens, cada um em uma margem oposta de um rio, ambos segurando varas de pescar. O homem da margem esquerda está acompanhado de um cesto com peixes dentro. O homem da margem esquerda lança a sua vara de pescar no meio do rio e o homem da margem direita lança a sua vara de pescar na outra margem do rio, em direção ao cesto que está ao lado do homem da margem esquerda. Fim da história.

Agora me fala com sinceridade, você pensou que a imagem era a representação do capitalismo selvagem? Ou você pensou que a imagem era a representação da predação do Estado sobre quem produz? Ou então era a representação do colonialismo explorador das grandes potências sobre os países de terceiro mundo? Ou qualquer outra coisa parecida… Pois é, se eu acertei que isso que ocorreu, então eu não sou tão maluco assim, pois não há absolutamente nada disso aí na imagem. Ou seja, você atribuiu um sentido para uma informação que não existe nela mesma, mas na sua cabeça. E como existe na sua cabeça, faz sentido para você e daí você conclui como entende mais conveniente.  Acho que já deu para entender onde eu quero chegar…

Vamos ao texto:

Uma pessoa chamada Lázaro foi a “estrela” dos noticiários policiais, de fofocas, telejornais, programas de amenidades, grupos de whatsapp da família e memes das redes sociais. E o que ele fez para ficar famoso? Nada que não ocorra todos os dias nestas terras tupiniquins: cometeu uma atrocidade humanitária, matando uma família inteira, depois cometeu outros crimes como roubo, cárcere privado e congêneres e depois fugiu.

Foi para uma área de cerrado, pintada e repintada pela literatura, novelas e manifestações públicas de gosto duvidoso, como terra de ninguém e fonte de conflitos agrários armados de alta periculosidade. Convenhamos que o cenário “ajudou” bastante na construção da narrativa. A polícia foi atrás e começou a ser desenhada a novela do entretenimento policialesco da vez. O fato (assim como a imagem) era uma busca policial pelo acusado de um crime.

A interpretação do fato e a atribuição de sentido para o fato incluiu uma seriação e encadeamento de informações que somos acostumados a ver e acompanhar em filmes de ficção do nível intelectual de Velozes e Furiosos. Considerando o valor milionário da franquia Velozes e Furiosos, dá para entender o porquê da escolha: esse negócio vende.   A partir daí o noticiário começa a tratar a perseguição com a mesma narrativa literária da ação. Constroem-se personagens, como o próprio criminoso (que ninguém conhecia), a sua família, a família morta, as testemunhas, os policiais, as autoridades e, obviamente, os especialistas comentadores. Afinal, é uma narrativa, mas uma narrativa que demanda informações para o público melhor compreender.  Não estamos diante de uma novidade. Quem já viu algumas primaveras no calendário como este que vos fala, teve a oportunidade de acompanhar o julgamento do casal Nardoni ser transmitido pela TV, com narrador e tudo, ao melhor estilo Premier League, com os respectivos comentários do falecido Luis Flávio Gomes, então criminalista conhecido por seu cursinho preparatório para concursos públicos. O especialista, como um “Arnaldo” do tribunal, explicava a regra e dizia o que podia e não podia, sem muito compromisso técnico ou honestidade acadêmica para explicar aquilo que não convinha aos patrocinadores.

Voltemos ao Lázaro... lá estava todo o pano de fundo para que nossa sociedade exausta, abusada por tudo que existe ao redor, desesperançada do porvir e carente de entretenimento tivesse ali o totem perfeito para canalizar a sua energia. A cada dia um novo capítulo, detidamente detalhado com novas narrativas, novos personagens, novas imagens e, porque não poderia faltar, novas manchetes bombásticas com informações super recentes que não diziam nada, mas aumentavam a tensão. E se aumentar a tensão aumenta o ibope.

E como temos um bocado de dificuldade de ver a imagem, mas sim o que projetamos na imagem (espero que meu exemplo acima tenha funcionado), o Lázaro se tornou o símbolo da criminalidade brasileira. Era o inimigo público número um, a pessoa contra a qual a sociedade precisava descarregar os seus traumas, reais e fictícios. Lázaro era o bálsamo contra o marasmo, a mesmice e a tragédia cinza da vida cotidiana sem graça, sem vacina e sem comida. Lázaro passou a carregar o peso do perigo que é viver neste país em que você pode ser a próxima vítima a qualquer momento. É o êxtase do cidadão de bem que desgasta seus dedos em teclados desejando que o Lázaro se acolhesse na casa de quem defendia a sua vida e não desejava a sua morte.

E com isso Lázaro virou meme, se tornou uma piada nas redes sociais e passou a simbolizar o que paulatinamente vem sendo construído no Brasil de forma visível apenas aos olhares mais atentos: a normalização da brutalidade e a institucionalização da morte. O final da novela é apoteótico, como todo bom filme de obviedades: o mal perde e o bem vence. CPF cancelado, assim comemoraram muitos. E se você pesquisar no google, vai perceber que o Estado brasileiro assumiu para si a atribuição de cancelar CPF’s indesejados ao seu alvedrio. E se você reclamar que algo de errado não está certo, é imediatamente convidado a ceder a sua residência para o abrigo de todos os Lázaros que existem neste país.

A morte de uma família virou novela policialesca, noticiada em meio à merchandising de cursos à distância, produtos de higiene pessoal e veículos zero km. A morte de uma pessoa, um criminoso, foi comemorada como uma vitória da sociedade que não permite a pena capital na sua Constituição de folha de papel, mas que se regozija de cancelar um CPF como o arremate perfeito para um roteiro pré-anunciado.

Nos 5 primeiros dias afirmei que Lázaro morreria rápido, mas achei que pelo menos morreria na prisão, com um lampejo de possibilidade de falar e ser ouvido. Foi mais rápido do que imaginei. O saldo final foi que vendeu bem, funcionou como reforço de ideologias, sacramentou a institucionalização da execução sumária como modus operandi do Estado brasileiro e, ao final, fez com que todos os espectadores preenchessem a sua imagem não com os fatos, mas com os seus próprios preconceitos.

Lázaro fez o mês de junho passar mais rápido; Lázaro fez da sua realidade, a supra realidade de todos; Lázaro foi um bom ator de si mesmo, ainda que sem ser convidado; Lázaro era só a “estrela” da vez e que ninguém mais vai falar. Ele serviu ao seu propósito de ajudar a colocar cada brasileiro mais anestesiado com atrocidades e mais próxima daquele Romano que vibrava no coliseu com cabeças decepadas do que dos racionalistas da Renascença.

Eu, que não sou um cidadão de bem, só espero que as obras de fixação das fogueiras em praças públicas, sejam gerenciadas pelos mesmos gestores que planejam as obras do Rodoanel, de modo a me garantir algumas décadas mais de expectativa de vida. Assim dá mais tempo para novos roteiros que necessariamente virão…

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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