Inclusão da pessoa com transtorno do espectro de autismo e a visibilidade dos invisíveis

Porque é importante uma política pública de inclusão como mecanismo de humanização e educação para o reconhecimento do outro.

http://josenicolas-art.fr/fr/portfolio-25051-0-40-french-doctors-une-aventure-humanitaire.html

Se há uma característica que este mundo contemporâneo nos esfrega à face diariamente é a complexidade. Tudo é extremamente complexo, muito mais do que seríamos capazes de processar há  pouco tempo. Essa complexidade do mundo se espelha no Direito. Há mais de 40 anos o curso de Direito era concluído em 4 anos. As matérias eram as clássicas: Direito Civil, Processo Civil, Direito Penal, Processo Penal, Direito do Trabalho, Processo do Trabalho, Direito Constitucional (bem mais ou menos e que já engolia o Direito Administrativo) e Direito Empresarial (que era Direito Comercial. E se alguém entender qual a enorme diferença entre um e outro me explica por misericórdia…).

Hoje o curso de Direito é concluído em 5 anos e todo mundo tem absoluta certeza de que não viu 20% do necessário. Surgiram inúmeras matérias novas no curso de Direito que sequer eram cogitadas há pouco tempo. Temos Direito Ambiental, Direito Eleitoral, Direito e Novas Tecnologias, Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente e por aí vai… a lista hoje é interminável.

E qualquer pessoa que ousa refletir um pouquinho sai desesperada porque tem absoluta certeza que estando com o canudo debaixo do braço (seja ele de graduação, pós graduação, mestrado ou doutorado) é mais ignorante do que ciente das coisas do Direito. Nesse universo de inúmeros microcosmos jurídicos (ou seja, mini universos jurídicos próprios) está o microcosmo das pessoas com deficiência (PCD).

A demanda é extremamente recente, dado que as pessoas com deficiência até  pouco tempo eram relegadas a uma classe inferior de seres humanos. A foto acima é apenas para refletir sobre o contexto, mas precisa ser explicada.

A foto foi tirada em um vilarejo chamado Deir al-Qamar, no Líbano, em 1983, quando estavam sendo invadidos pelos Drusos (uma comunidade autônoma islamita) em mais um dos episódios da guerra civil do Líbano. Neste contexto de guerra, vários hospitais eram mantidos por freiras. Mas a guerra era religiosa e por aquelas bandas o Islã é sensivelmente mais poderoso.

Por causa disso, esse hospital foi abandonado pelas freiras que o mantinham (não as julguemos antes de refletir o que faríamos no lugar delas, pois estavam preservando a própria vida) e esses meninos, assim como diversos outros pacientes, ficaram para trás. O registro, então, foi feito pelo fotojornalista francês José Nicolás, que acompanhou a organização “Médicos do Mundo” que assumia o cuidado daqueles pacientes no momento. Ou seja, no contexto, não dá para saber exatamente se aquele era o tratamento destinado normalmente às crianças, qual era o tipo de deficiência que elas tinham e em que condições eram acolhidas. Principalmente em um contexto de guerra, todas as regras são flexibilizadas e as pessoas vulneráveis ficam ainda mais vulneráveis.

Fato é que apesar de todo esse recorte explicativo, é preciso compreender, para fazer uma avaliação crítica da foto, que naquele contexto não havia qualquer preocupação com as pessoas com deficiência. E não precisamos ir para o Líbano. Basta a leitura do livro “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex (já indiquei ele aqui antes) para saber que em terras tupiniquins não era nada diferente (se não fosse muito pior, já que não estávamos em guerra). Daí que surge a luta antimanicomial e tantas outras para expor que seres humanos estavam sendo tratados como seres humanos menores ou de segunda categoria. E dentre as várias manifestações consideradas como expressões de deficiência, hoje me interessa falar sobre o transtorno do espectro do autismo.

Eu me lembro com absoluta clareza a primeira vez que ouvi a palavra autismo. Era uma propaganda da Rede Globo com o Antônio Fagundes falando de uma associação que prestava apoio para crianças com autismo. A imagem era a mais caricata de todas: uma criança sozinha em um parque, isolada e olhando para o chão sem dar margem para qualquer comunicação com o mundo exterior. Mal eu sabia que muitos anos depois eu me depararia com dois diagnósticos absolutamente impactantes e que levariam à reflexão sobre o bem e o mal daquela propaganda: o meu e o da minha filha.

Entretanto, essa é a imagem que a imensa maioria das pessoas ainda tem do espectro de autismo e que gera muita (muita!) desinformação. O espectro de autismo, assim como o mundo contemporâneo, é complexo demais para ser resolvido com respostas simples. E a dificuldade começa já com os dados técnicos entre os profissionais que trabalham diretamente com a saúde (sim! O espectro de autismo ainda é um mistério para os profissionais! Imagina para o leigo…)

Veja que o espectro de autismo ganhou espaço na DSM-5, que é a 5a e última revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais) somente em 2013! Isso… você não leu errado! Até 2013 o transtorno do espectro do autismo não tinha sequer classificação técnica. Não que não fosse conhecido, mas a sua invisibilidade para as ciências da saúde lhe custava a atenção apenas de uns poucos inquietos. Não por outro motivo, há inúmeros profissionais que simplesmente não o conhecem e, com isso, se tornam incapazes de dar um direcionamento adequado para o devido suporte.

No Brasil, a Lei n. 12.764, que traça uma política nacional para a proteção de direitos das pessoas com espectro de autismo foi publicada em 2012. Já na CID (Classificação Internacional de Doenças), o espectro de autismo só foi contemplado em 2018. Detalhe: só começa a valer em 1°/01/2022. Ou seja, este universo de pessoas (que se descobre cada vez mais amplo ), passa a existir para o mundo há menos de 10 anos! Uma pessoa que hoje é um adolescente de 15 anos e tem espectro de autismo nasceu sem um lastro normativo e clínico minimamente sedimentado para orientar os profissionais que a acompanhariam ao longo da infância. Deveria ser surreal, mas é real mesmo.

A maior dificuldade é superar a noção clínica de “doença”. Transtorno é uma coisa, síndrome é outra e doença é uma terceira (e não serei eu, absolutamente ignorante em matéria de saúde, que vou pretender te explicar isso… e por favor!!! Não pesquisa no google!).

Fato é que não existe portador de autismo, pois autismo não é doença para ser portador. E isso é relevante para entender que qualquer mentecapto que ofereça “cura” para o autismo já mostra absoluto desconhecimento da matéria. Não nos enganemos, há muitos charlatões por aí interessadíssimos em famílias desesperadas, com um diagnóstico nas mãos e pouco orientadas para ganhar dinheiro a custa do sofrimento alheio. De todo modo, não dá para “romantizar” o espectro de autismo. É sofrido, gera inúmeras limitações (que podem ser superadas ou adaptadas em alguns casos) e se não há um anteparo normativo e estrutural, essas pessoas serão alijadas da sociedade. E é aí que entra o mundo do Direito.

Assim como em qualquer microssistema jurídico, esse movimento não fez surgir milhares de pessoas com autismo no país. O que o microssistema faz é tirá-las da invisibilidade. Os meninos da foto eram invisíveis à época (com autismo ou qualquer outra atipicidade) e não nos enganemos: a publicação desta foto não ou trouxe à visibilidade. Eles permaneceram assim e ninguém sabe onde estão hoje. Da mesma forma foi no Brasil e ainda é.  Agora sim… vá ao google e dá uma pesquisada. Você vai se horrorizar com o número de casos hoje (Sim! Atuais!) de pessoas acorrentadas, trancadas em cubículos escuros, abandonadas na rua e etc por não serem adequadas.

O arcabouço normativo que oferta ferramentas para afirmar à sociedade que pessoas atípicas (e eu gosto demais desta definição!) devem ser incluídas na sociedade e não serem alijadas dela é um primeiro passo. O segundo passo é informativo: é preciso reconhecer que esta sociedade, para qual a lei é destinada, não conhece esta realidade e, com isso, precisa ser informada para entender do que trata a lei.

A visibilidade tem a primeira função pedagógica de fazer com que algo ou alguém exista para o mundo. Sempre foi assim. Os escravos passaram pelo processo de existir para o mundo (e esse caminho ainda não foi concluído, é triste constatar), as mulheres passaram por este processo (e também ainda estão caminhando lentamente), a comunidade LGBTQIA+ segue o mesmo rumo e assim por diante. Aqui não é diferente.

A cada dia, o Direito vai assumindo que a sociedade é muito mais complexa do que o simplismo com que era tratada anteriormente. E antes era simples porque havia um modelo (um padrão “típico”) e o resto “não existia”. Fazer todos os seres humanos existirem para a sociedade é um trabalho para gerações, mas um dos desafios mais promissores das próximas gerações.

Quem sabe um dia, atípico não seja mais uma classificação de pessoas, mas um padrão. Se cada ser humano é único, então o padrão deveria ser não haver padrões. Ainda não estamos preparados para esta conversa… mas estamos caminhando para ela. Tenhamos esperança.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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