A prisão do artista leva a uma reflexão um pouco mais elaborada sobre o que está por trás do fato noticiado

Violência contra a mulher – https://br.depositphotos.com/vector-images/viol%C3%AAncia-contra-mulher.html?offset=100&qview=37651339
Novamente, depois de passar o furor das notícias, sobra um pouco de espaço para refletir com mais profundidade e complexidade sobre temas relevantes e com a relevância que merecem. O furor da vez foi a publicidade que se deu em relação à agressão que o artista DJ Ivis praticou contra a sua esposa na frente do seu filho pequeno e de outras pessoas.
Antes de entrar na questão que me interessa de verdade, é importante pontuar um item que julgo pertinente.
E o item é o fato de que o caso se tornou notícia porque o autor da conduta é famoso. Ainda que o nome fosse um ilustre desconhecido para mim, basta uma simples busca na internet e já dá para perceber que o moço tem relevância para um determinado público segmentado (e eis o motivo de eu não o conhecer). Assim como casamentos, aquisições, falências e viagens, o público adora um caso criminal de alguém famoso.
Vira palco, festa e espetáculo. Como em um grande coliseu, as pessoas se refestelam em imagens e fervorosos comentários sobre o caso, o artista e o que vai acontecer agora, a evidenciar este espírito de fuga das nossas monótonas vidas cotidianas para espetaculosas vidas midiáticas. O problema é que este não é um caso de TV. Segundo o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, experimentamos o inescrupuloso número de 105.821 denúncias de violência doméstica contra a mulher.
Esse número representa uma média de 12 atos de violência doméstica por hora, 24h por dia, nos 365 dias do ano. E esses são os documentados, pois é mais do que sabido que a imensa maioria dos atos violentos sequer chegam ao conhecimento das autoridades. E muitos destes que chegaram, quando chegaram, já representavam o nível do insuportável para a vítima em relação aos inúmeros outros não registrados.
Ou seja, o problema é muito pior. Assim, considerando que já entendemos que enquanto este caso era noticiado na TV muitos outros ocorriam e não saberemos, podemos voltar ao nosso show de horrores cotidiano. Este que me interessa mais.
E vou começar com um item que todo mundo sabe para chegar a uma conclusão que talvez nos ajude a refletir: o referido DJ Ivis ganhou mais de 200.000 seguidores nas redes sociais depois que o caso e as imagens dele agredindo a esposa vieram à tona.
Ou seja, muitas pessoas gostaram do tema, se interessaram pelos personagens e pela história e criaram alguma empatia pelo evento e seus envolvidos.
E é aqui que eu começo a pensar, para entender a posição de alguns personagens neste cenário. É preciso compreender que a questão da violência doméstica contra a mulher (e da violência contra a mulher em geral) é tratada da forma mais indecorosa possível. Ainda nos agarramos, como náufragos bêbados, à ripa de madeira fraca que boia no nosso sistema chamado “lei”.
Há lei para absolutamente tudo e não percebemos mudança real. Há avanços? Óbvio! Mas são tímidos demais para acharmos que estamos caminhando para um ambiente minimamente civilizado. E porque isso? Porque temos um fetiche freudiano com leis!
O problema é que a lei é papel e papel aceita tudo. Só que a vida não aceita o papel. Há um jargão na sociologia jurídica que é laconicamente ignorado por nossos juristas pelo constrangimento que causa: “Se quiser saber como uma instituição jurídica funciona, procure em todos os lugares menos na lei que a criou”.
É uma coisa triste, mas é escondida para debaixo do tapete para evitar tirar a pompa da nossa honrosa profissão jurídica que não se cansa de perpetuar a autoafirmação de ser a única capaz de resolver todos os problemas da sociedade. Afinal, como justificar nossos portentosos palácios, caras instituições, reluzentes eventos e tabelados honorários, se não somos os super heróis da nação?
Quero eu dizer que o Direito não é importante no combate à violência doméstica contra a mulher? De forma alguma! É muito importante. Só que é pouco e absolutamente incapaz de sozinho, com suas leis, com os processos e seus profissionais alinhadíssimos em vestimentas de rico acabamento, ter alguma relevância para atacar a causa do problema.
E para compreender esta perspectiva, gostaria de ilustrar com um exemplo que sempre foi muito emblemático para mim. A Lei n. 13.104/2015 instituiu o denominado feminicídio, que nada mais é do que uma qualificadora para o crime de homicídio estabelecido no art. 121 do Código Penal.
A lei em questão foi publicada no dia 09 de março de 2015, logo depois das comemorações do dia internacional da mulher daquele ano, com uma cerimônia no Palácio do Planalto. A Presidente era Dilma Rousseff, que fez um discurso sobre as ações do governo no combate à violência doméstica, seguida de vários outros comentários panfletários sobre o avanço do país no combate a esta chaga.
Tudo muito bonito de se ver… mas volta um parágrafo acima por favor e lê de novo. O feminicídio é uma qualificadora do homicídio, dando-lhe pena mais severa quando praticado contra a mulher em condições de violência doméstica ou por misoginia.
Sou só eu que li isso ou você pode concordar comigo que a lei está mandando o seguinte recado para as mulheres do Brasil: “Querida mulher brasileira, a partir de agora, quando você for vítima de homicídio dentro da sua casa pelo seu companheiro, atuaremos firmemente para que ele seja punido de forma severa”.
Não sei se você ficou emocionado, mas eu não gostaria de precisar morrer primeiro para descobrir se o Estado é capaz de fazer alguma coisa.
Percebeu o problema do Direito? Por natureza, o Direito é o coleguinha “retardatário” da turma. A gente chega depois que o leite derramou. Não existe (ainda bem!) Direito Penal Preventivo incidente sobre aquilo que ainda não aconteceu.
Logo, o Direito Penal não é capaz de resolver problemas sociais, pelo óbvio de que ele incide exatamente depois que o problema já aconteceu! Quem ganha com isso além de vendedores de livros e apostilas para concursos públicos? Ninguém! Os vultosos rendimentos de quem prepara os candidatos para a próxima prova que se aproxima não servem de muita coisa para a d. Maria (da Penha e de tantos outros sobrenomes) que continua apanhando e morrendo dentro de casa.
Algum desavisado poderia dizer: mas Hudson, com a pena maior muitas pessoas vão deixar de praticar crimes. Bom, olhando para o nosso sistema carcerário, para o limite de penas do tráfico de drogas, roubo e homicídio, para a lei seca que proíbe a direção sob efeito de álcool e drogas e para os números da violência do país, fica fácil de perceber que não é da nossa cultura visitar o Código Penal antes de tomar determinas decisões. Em sendo assim, é um tanto quanto improvável que alguém vá deixar de agir como agiria invariavelmente por causa de uma lei. Sigamos…
Sob essa perspectiva, conseguimos perceber que a Antropologia Jurídica é muito mais importante do que a lei escrita. Já ouviu falar desse negócio? Então… A Antropologia Jurídica é uma ilustre desconhecida dos… juristas! Ela não está nas diretrizes curriculares nacionais do MEC para o curso de Direito e tampouco nas grades das faculdades de Direito espalhadas pelo país. Não é cobrada na prova da OAB e também não aparece em concursos públicos. Para um “bom” profissional do Direito, ela não serve para coisa alguma.
E sabe o porquê? Porque ela ensina (e eu não sou especialista na matéria, afinal sou Advogado) que o Direito precisa de uma sociedade com valores éticos minimamente compartilhados para que as leis que organizam estes valores tenham um padrão de eficácia razoável. Ou seja, a cultura é muito mais forte do que a lei. Como sociedade, aderimos à lei que projeta de forma minimamente clara nossa cultura.
Nossa cultura é a de que beber é valor e veículo é status. Eficácia da lei seca: zero. As pessoas continuam bebendo e dirigindo como se não houvesse amanhã. E para muitas não há, depois desta decisão. E todas as outras continuam fazendo. A lei não é parâmetro porque não projeta a sua cultura. Daí a lei é ignorada e a pessoa que a infringe sequer se vê como um “criminoso”.
Trazendo para o nosso raciocínio, a violência doméstica contra a mulher está entranhada na nossa cultura de modo sólido, profundo e institucional. Ela é normalizada diariamente por homens e mulheres, envoltos uma solidificação de valores sociais tão forte que é muito difícil compreender porque existe processo para “resolver” este tipo de problema.
A violência doméstica contra a mulher é normalizada nos espaços públicos e privados, na criação dos filhos e filhas, na formação escolar e nas interações sociais. É algo tão culturalmente enraizado que é difícil de perceber que está lá, pois, antropologicamente falando, é a realidade e não um problema. A maior evidência disso é o fato de que a agressão perpetrada pelo DJ Ivis foi filmada e ele ainda buscou justificar a sua conduta incriminando a esposa, como se existisse alguma justificativa aceitável para a conduta. Reforça esta ideia o fato de que mais de uma pessoa presenciou as agressões e simplesmente não reagiram, como se não fosse algo que exigisse uma reação (troque a violência doméstica por tráfico de drogas e conclua por si se a reação seria a mesma).
Neste cenário, qual a força do Direito para inibir a violência doméstica contra a mulher? É triste dizer, mas é algo muito próximo de zero. Enxugamos gelo todos os dias, isso quando se tenta enxugar o gelo. E, sozinhos, não vamos resolver o problema nunca.
A menos que queiramos continuar no nosso Coliseu contemporâneo, nos divertindo e distraindo com o drama e o sofrimento alheios, que virão aos montes inevitavelmente, é preciso entender que os crimes contra as mulheres devem ser combatidos no berço. O combate à violência começa na instrução de pais, mães e demais envolvidos na criação das crianças. O direito ao planejamento familiar está na Constituição não para enfeite, mas para isso também.
Ele continua na educação escolar, nas interações sociais, na educação sexual (sim, esta degenerada!), na formação cultural, na preparação para o mundo do trabalho e na educação para interação com o Poder Público. Este percurso deve ser permeado por uma perspectiva formativa que ensine meninos e meninas, homens e mulheres, que cada ser humano é independente; que as pessoas são livres e iguais; que um relacionamento afetivo não lhe dá poder sobre o corpo do outro; que a vontade de um ser humano deve ser respeitada, ainda que contrária à sua vontade; que habilidades físicas e intelectuais não são características natas, mas adquiridas; que diálogo e dissenso são símbolos de civilidade e maturidade; e que violência física, verbal ou de qualquer outra ordem é sinônimo de fraqueza intelectual e moral, assim como de debilidade para o convívio entre iguais.
Todo este trabalho é feito por profissionais sem formação jurídica (ainda bem!) porque não tem qualquer relação com processos, mas com pessoas em diferentes estágios e espectros da vida. Daí sim, depois de todo este percurso formativo, inevitavelmente algumas pessoas vão romper com este pacto ético cultural e praticarão violência doméstica.
Neste contexto que surge o Direito e seus profissionais do processo, para buscar a equalização jurídica de uma conduta antropologicamente inadequada, conforme a lei escrita que expressa esta cultura. Enquanto não pensarmos assim, seguiremos em nossas pomposas casas legislativas e judiciárias, envoltos em processos, seminários e produções acadêmicas sobre temas legislativos abstratos, enquanto Marias são mortas e mutiladas para o deleite dos espectadores sedentos por “entretenimento” e convalidação da nossa débil experiência civilizatória.