Democracia e liberdade religiosa: como entender atualmente que de boas intenções o inferno está cheio

Recente decisão do STF estabelece que é inconstitucional impor a compra de Bíblias pelo Estado e reacende a discussão sobre a ideia de maioria no Estado Democrático de Direito.

No dia 12/04/2021, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) n. 5.258/AM, tendo como relatora a Min. Carmen Lúcia. O julgamento em questão, apesar de um pouco apagado por causa de outros temas que pipocavam na pauta política (afinal de contas, emoção no Brasil é tempero que não falta), merece muita reflexão. Nesta decisão, o STF concluiu que a “imposição legal de manutenção de exemplares de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas estaduais configura contrariedade à laicidade estatal e à liberdade religiosa consagrada pela Constituição da República de 1988”

O caso é bem simples de entender, mas as implicações são bem espinhosas, então é preciso começar do começo. La no Amazonas, a ALEAM (Assembleia Legislativa do Amazonas), com a devida sanção do Poder Executivo, fez aprovar uma lei obrigando que todas as escolas públicas e bibliotecas públicas do Estado do Amazonas tenham um exemplar da Bíblia (sim, a Bíblia cristã).

Pelo censo de 2010, 86,8% dos brasileiros se declararam cristãos, sejam católicos ou protestantes. Com um volume desta monta, é forçoso concluir que o cristianismo representa, de fato, a religião da esmagadora maioria dos brasileiros.

E é aqui que entra o Direito…

Existe uma teoria política com amplas repercussões jurídicas que parecia já meio passada e empoeirada, mas que precisa voltar a ser discutida com seriedade, qual seja: a contraposição entre democracia e ditadura da maioria. Nossas estruturas de poder são construídas para nos induzir a crer que a maioria deve prevalecer e colocar as regras do jogo.

Olhe bem para as eleições e você vai perceber isso: muito poucas pessoas entendem com clareza como funciona as eleições para o legislativo (vou voltar nisso daqui a pouco), mas todo mundo entende bem como funciona o leilão para o Executivo. Quem tiver o passe mais alto (maior número de votos) leva tudo.

É a regra da maioria escancarada e de forma muito elementar. Somam-se todos os votos, coloca o voto de cada candidato em uma caixinha e a caixinha mais cheia está com a caneta na mão.

Parece simples certo? O problema é que isso é bem complicado. Vamos pegar a última eleição municipal de Belo Horizonte como nosso rato de laboratório. O atual prefeito, Alexandre Kalil, conseguiu um feito digno de nota, a considerar o histórico das eleições municipais: venceu no primeiro turno e com uma diferença muito sensível de votos em relação ao segundo colocado (63,36% x 9,95%).

Pergunta óbvia: o atual prefeito representa a maioria? Resposta óbvia (ou não): não sabemos. E porque com 63,36% nós não sabemos? Porque esse percentual representou o equivalente a 784.307 votos. Ocorre que a população de Belo Horizonte é composta de 2.722.000 de habitantes.

Voltando para a matemática básica, o atual prefeito foi escolhido por 28,81% da população de Belo Horizonte. Não precisa forçar muito para concluir que 28,81% é minoria, mas essa minoria, nas eleições significaram 63,36%.

Um parêntesis necessário: a partir de agora, sempre você vir números e percentuais, entenda que não há nada mais falacioso do que um número, principalmente quando separado por duas casas decimais diferentes de zero depois da vírgula. Eles inspiram confiança, exatidão e na maioria das vezes dizem o que o divulgador dos números quer que você entenda.

Voltemos. Essa ladainha toda foi para te mostrar que nem os nossos representantes eleitos para os cargos que elegem quem tem a maioria de votos representam a maioria da população “de verdade”. E daí que vem o risco de o eleito achar que representa o “povo” (essa palavra já tão desgastada) e querer fazer da sua vontade a lei, como se a vontade do povo fosse.

Deu para ver que não é. Logo, esse critério falha miseravelmente no índice de legitimidade e, por isso, não pode ser considerado. E não fosse só isso, estamos aqui a tratar de um dos elementos mais caro para uma democracia, qual seja: a diferença, a divergência, a discordância e a liberdade para contrariar.

Ao contrário do que alguns ingênuos de plantão pensam, a festa democrática se faz em um ambiente tenso, onde as ideias divergem, as ideologias se embatem e a convergência é sempre precária e sujeita à revisão. E que bom que é assim! Porque quando absolutamente tudo está em paz, ninguém questiona, ninguém diverge e ninguém se rebela, fatalmente há alguém com (muito) sangue nas mãos e mordaças em ação. Como já nos lembrava O Rappa, desde 1999, “a paz que eu não quero” é “paz sem voz”, pois não “é paz, é medo”.

É por isso que as eleições para o legislativo são tão embrulhadas de entender. Elas usam um critério que tenta diminuir os efeitos dessa maioria e permitir que a minoria seja representada no legislativo. Daí porque as eleições d Executivo são majoritárias (maioria leva) e as do legislativo são proporcionais (nem sempre a maioria leva, de modo a ter o maior número possível de diversidade representativa).

Segundo parêntesis necessário: a partir de agora, sempre que observar uma pessoa exigindo ordem, rigor e essas coisas utópicas, pense e a questione (se tiver oportunidade) qual a quantidade de liberdade ela está disposta a abdicar, e a favor de quem, para ter essa paz.

Voltemos ao raciocínio para concluir que só existe democracia onde existe confusão, gritaria, cabo de guerra e chute na canela. Tudo no sentido figurado por favor!!! A regra central sempre é compreender que conviver em uma democracia é ouvir o que não se gosta, conviver com o que não se concorda, compartilhar espaços públicas com modos de vida que me desagradam.

Ou seja, a democracia só é democracia quando aprendemos que o que eu penso que é certo, meus valores morais, meu modo de viver, minhas ideologias e minha visão de mundo só servem para mim e para os meus. E só é democracia quando aprendemos que devemos conviver com pessoas que são nossos opostos e que muito provavelmente nos causam mal estar de alguma forma. E está tudo bem.

Voltemos mais uma casa para falar da Bíblia. Depois de tantos números, você pode imaginar que a Bíblia (ou o cristianismo) não foram eleitos nas últimas eleições e por isso seus percentuais entre os brasileiros são mais reais do que os eleitorais. Logo, ficaria tentado a concluir que essa maioria então tem legitimidade de colocar as regras do jogo.

Mas olha a falácia dos números de novo… O IBGE cataloga (com algumas críticas, pela generalidade com que trata das religiões de povos originários e de matriz africana) cerca de 50 vertentes religiosas no Brasil (para fins de elaboração do Censo). Dessas 50, apenas 19 são vertentes do cristianismo. Ou seja, em termos de diversidade religiosa, há mais religiões não cristãs no Brasil do que religiões cristãs.

E porque esta ponderação é importante? Pelo mesmo motivo que a maioria eleitoral. A maioria não significa (nem de longe) o todo. E o que seria da democracia sem a divergência. Além disso, a História está tristemente documentada com inúmeros relatos do desastre que é inserir dogmas de uma religião nos meandros do ordenamento jurídico do Estado.

Quer um exemplo? A Constituição Política do Império do Brazil de 1824 (é assim que escreve mesmo!) foi publicada “em nome da santíssima trindade” e tinha, no seu art. 5º, a seguinte redação: “Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.”

Qual o significado prático disso? Quem não era católico tinha uma chance muito razoável de ser preso por práticas religiosas “inadequadas”, até porque só havia licitude em expressar em público o catolicismo. E para quem não se recorda, mestre pastinha não nos deixa esquecer que até a primeira metade do sec. XX jogar capoeira era considerado vadiagem e dava cadeia.

Como resolvemos isso: com o famoso (mas incompreendido) Estado Laico. Ao contrário do que muita gente pensa, Estado Laico não é Estado Ateu. A laicidade estatal está exatamente em não interferir nem positiva e nem negativamente em religião alguma. Tratando-se a esfera íntima das pessoas, cada um tem o direito de ter e exercer a sua religião ou de não ter religião alguma e nada fazer.

E como se trata de algo da esfera íntima de cada um, não pode o Estado (que é financiado com o dinheiro do pagador de tributos, é importante lembrar…) gastar o erário financiando vertentes religiosas e muito menos as perseguindo!!! Veja que a laicidade estatal opera em duas frentes. Não pode o Estado promover qualquer religião e nem proibir qualquer religião.

Neste quesito, espera-se que o Estado nada faça, pelo simples fato de que não há absolutamente nada neste tema que ultrapasse a esfera da intimidade das pessoas. Qualquer coisa diferente disso, seria autorizar que o Estado utilizasse o dinheiro do cidadão que paga seus tributos para promover ou perseguir religiões.

E o que o Estado do Amazonas fez? Criar uma lei para determinar que o Estado gaste dinheiro público para adquirir o livro sagrado de uma vertente religiosa. Ou seja, o Estado pretendeu (com a legitimidade que pudemos verificar aí acima) pegar o dinheiro do ateu, do umbandista, do judeu, do espírita, do budista, do hinduísta, do católico, do protestante, do satanista, do islamita, dos esotéricos, daqueles vinculados a tradições indígenas, do candomblecista e de tantas outras religiões de matriz africana e originária para financiar/fomentar a aquisição, divulgação e acesso de todos a uma única vertente religiosa.

Não precisa forçar muito para concluir que isso contraria descaradamente o disposto no art. 19 da Constituição, que veda à União, Estados, Distrito Federal e Municípios a subvenção de cultos religiosos ou igrejas.

E o fato de esta subvenção se dar em relação à manifestação religiosa mais massiva dentre a população brasileira torna o debate ainda mais necessário, pois dá a ideia de como a noção de maioria ainda é mal compreendida por nossos representantes públicos. A maioria não pode se converter em ditadura da maioria, pois onde não existe minoria e divergência, sequer há democracia (o que paradoxalmente, ou não, elimina a lógica de existir uma maioria).

E se você é cristão e acha um tanto quanto exagerado este posicionamento, é importante lembrar que a Bíblia cristã (essa que o Estado do Amazonas queria impor a todos) trata do falso Messias, que vem com cara de Messias, fala de Messias e aparência de Messias, mas na verdade é o anticristo. Esta metáfora bíblica (sim, é uma metáfora) nos ensina que por trás de aparentes boas intenções (ou de manifestadas boas intenções) é possível ocultar hediondos interesses.

E se há um lugar para se propagar boas intenções e atrais os interesses de falsos Messias no mundo contemporâneo, este lugar é o Estado. Ele é imenso, poderoso, rico e fortemente armado. Daí porque é melhor evitar dar poder demais para o Estado enquanto ele nos beneficia, pois pode ser que a situação se altere e viremos a minoria de um Estado gigante e pouco acostumado com a divergência. Isso costuma ser perigoso.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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