CPI da Pandemia: o que é e porque é importante saber do que se trata depois que todo mundo já virou especialista

“Como muita coisa no Brasil, a CPI da Pandemia divide opiniões e expõe o completo desconhecimento do que se trata uma CPI”.

A década de 1990 foi muito famosa por inúmeras CPI’s instauradas (quem já tinha ingressado no irretornável caminho da vida adulta à época bem se lembra). Muita gritaria, choro e ranger de dentes, mas sem o desfecho que todo bom filme de mocinho e bandido oferece.

Essa falta de final feliz levou as CPI’s a assumir uma função primordial no imaginário popular: nada… E dali em diante qualquer notícia de instauração de CPI é, de regra, seguida pelos telespectadores de algum comentário do tipo: “mais uma CPI para falar muito e dar em nada!”, com variações menos educadas quando a exclamação é feita na mesa do bar.

Por um tempo essas comissões não estiveram muito nos holofotes e o assunto ficou um pouco morno no grande tribunal da cidadania (que não é o STJ, mas as rodas de conversas familiares aos domingos com a ilustre participação da tia do zap). Não que elas deixaram de existir, sempre estiveram lá, mas não tinham a graça necessária para atrair a opinião pública.

Agora, com a instalação da CPI da Pandemia, voltamos ao tema e os especialistas do Instagram pululam suas teses favoráveis ou contrárias ao movimento, ao bel prazer das suas convicções, mas sem um arranjo jurídico-político convincente. Como já é de costume, a regra é falar sobre aquilo de que não se faz a menor ideia, desde que com convicção. Aí a conversa rende.

O problema hoje é que as fake news se tornaram uma praga egípcia da contemporaneidade e o que era ruim obviamente piorou muito, considerando que além da clássica desinformação, há um verdadeiro movimento para criar falsas realidades que atendam a interesses determinados. Neste contexto, é fundamental voltar ao começo para entender para onde vamos, pois isso vai ajudar a entender que as coisas que tia compartilha no grupo da família são, em sua maioria, bobagens.

Logo, de tudo que se podia falar sobre a CPI da Pandemia, vou me ater a explicar que raios é uma CPI, para que ela serve, como se compõe e como podemos medir a sua efetividade. Com estes questionamentos elucidados, me dou por satisfeito e os demais temas passíveis de discussão podem ficar para outro momento.

Assim, ao invés de ficar desenhando artigos da Constituição da República, do Regimento Interno do Senado e teses jurídicas embolotadas, melhor fazer alguns paralelos. Te convido a começar pelo nome completo e não pela sigla: Comissão Parlamentar de Inquérito.

Para quem é servidor público ou tem contato com o serviço público a palavra comissão é do senso comum e nada mais é do que um grupo de pessoas previamente destinado para cumprir uma função pré-determinada. Tem comissão de patrimônio, comissão de cerimonial, comissão de licitação, comissão de sindicância e assim sucessivamente. Juntou um grupo para fazer algo específico, na Administração Pública, é uma comissão. No setor privado tem nomes mais pomposos, de regra em um desnecessário inglês, mas no fim é a mesma coisa.

No Poder Legislativo, que compõe a Administração Pública, não seria diferente. Lá, por força do livrinho (vulgo Constituição da República), existem as comissões permanentes e as comissões temporárias. Permanentes são comissões como as do orçamento (afinal, deveria ser votado todo ano…), a Comissão de Constituição e Justiça e essas que abarcam matérias que são ininterruptamente tratadas. Temporárias são as comissões que têm foco em fato determinado, com começo, meio e fim.

Esse é exatamente o caso das CPI’s que, não por outro motivo, são designadas pela Constituição “para a apuração de fato determinado e por prazo certo”. Nada mais elementar diria eu… ao que escuto uma resposta típica de quem se abastece demais de informações da tia do zap: claro que não! Com tanta roubalheira é preciso que não desinstale nunca! Bom, espero que até o final do texto haja salvação…

Então o primeiro nome já foi e já temos clareza de que uma comissão aqui se trata de um punhado de gente junta para fazer alguma coisa pré-definida. O segundo nome é “parlamentar”. Parlamentar é tudo aquilo que é próprio do Parlamento, ou seja, daquelas pessoas designadas para representar as pessoas de uma determinada região em uma assembleia (que também designa conjunto de pessoas, pois basta você pensar na assembleia do seu condomínio) ou assemelhado nos Estados que adotam um regime representativo.

E sim, pode parecer um pouco esquisito, mas parlamentares são políticos em qualquer lugar do planeta terra. Nem todo político é parlamentar, mas todo parlamentar é político. Logo, uma comissão parlamentar é uma comissão política.

Parece uma imensa bobagem e uma obviedade fazer esta afirmação, mas não é. O que mais se ouviu nos últimos tempos era que a comissão ou seus membros não eram imparciais para julgar os fatos objeto de apuração (seguro o verbo julgar aí que eu vou voltar nele na última palavra do nome). Ocorre que imparcial é o juiz togado, aquele que compõe o Poder Judiciário.

Não precisa de muita força para entender que o juiz (mais ou menos imparcial, o que renderia outro texto) não tem absolutamente qualquer relação com uma comissão parlamentar, pois representa um Poder da República diferente! Tirando o juiz, o político então tem que ser imparcial? Obviamente que não! E ainda bem que não!

A política é a alternativa para a guerra. Duas ou mais pessoas, duas ou mais cidades, duas ou mais nações tem duas alternativas para a solução de divergências: guerra ou política. Não tem meio termo. Ou há conversa ou há conflito. Logo, a política é o espaço para a expressão de ideologias pré-estabelecidas, com o intuito de lhes dar voz e representatividade social e, com isso, ampliar os debates públicos e buscar o consenso. Eis aí a arte do diálogo.

Neste contexto, fica muito elementar que o político não pode ser imparcial (veja que eu não disse que ele “não deve”, mas que ele “não pode”), dado que o espaço que ocupa é inexoravelmente parcial, porta voz de uma visão de mundo que o elegeu e agregador de informação ao debate que será composto de tantas outras ideologias e visões de mundo que se expressam nos demais parlamentares.

Daí porque é tão destacada a disputa pela escolha dos cargos e postos na CPI, pois cada um destes lugares é um ponto de afirmação de pautas sustentadas por aquele representante. Ou seja: se alguém disser que a CPI da Pandemia é política você já sabe que deve responder com um caloroso “ainda bem!”. Não fosse política, estaria no lugar errado.

Ou seja 2: se alguém disser que a CPI da Pandemia não é imparcial você já sabe que deve responder com um aliviado “e quem não sabe disso?”, considerando que ela é composta por políticos que têm por função do cargo serem parciais na defesa das ideias que os elegeram. Obviamente que cabe a cada um avaliar o que o político X ou o político Y fala para ver se fica convencido ou não (o importante é ouvir antes de chamar de qualquer nome que evidencie desprezo pela existência do outro que diz algo que não seja afável aos seus tímpanos sensíveis).

Por fim, a Comissão, que é Parlamentar, é de Inquérito. E o que seria um inquérito? Acredito que todo mundo já ligou a TV ou abriu um jornal e viu/leu algo do tipo: “A Polícia Federal abriu inquérito para investigar supostos atos de corrupção…”. Tirando o fato de que não dá para “abrir um inquérito”, mas sim “instaurar”, a notícia não está errada.

Quem instaura inquérito é a Polícia (Civil ou Federal), por meio do Delegado de Polícia (Civil ou Federal) para a investigação de um fato determinado e por prazo certo (lembrou da menção da Constituição? Que bom, pois não é coincidência!). A pergunta que não quer calar é a seguinte: já viu um delegado proferir sentença condenatória contra um criminoso? Já viu alguém preso por sentença de delegado? Se viu, eu vou ficar bem preocupado, pois isso não existe.

Quem sentencia criminoso é o juiz (aquele imparcial…). E que raios faz o delegado? Ele apura a famosa justa causa penal, que nada mais é do que a verificação se no caso determinado existe materialidade de crime (prova de que um fato tido como crime aconteceu) e indícios de autoria (provas superficiais que indicam a probabilidade de que determinada pessoa tenha algum tipo de relação com o fato que foi provado ter acontecido).

Se ele encontra isso tudo, o que ele faz? Manda prender o suspeito? Obviamente que não! Ele faz um relatório final, destacando o que foi feito na investigação, quais provas foram colhidas e quais suspeitos (e de que são suspeitos!) foram encontrados. Termina esse relatório (que nada mais é do que um texto descritivo) e envia para o Ministério Público para que ele (o MP) avalie se denuncia o suspeito perante o Poder Judiciário ou não.

Ou seja, o que o delegado tem de domínio sobre o caso depois da elaboração do relatório final? Nada… se o suspeito vai ser preso ou não, se vai sequer responder processo ou não, condenado e qual tipo de condenação, tudo isso é tema para as autoridades competentes (que são o Ministério Público – que denuncia ou não – e o Judiciário – que condena ou não).

Não curiosamente, se a Comissão, que é Parlamentar, é de Inquérito, teria ela objetivo de punir alguém? É claro que não! Se é um inquérito, é mera investigação, que não pode (novamente, não pode!) resultar na condenação de ninguém. Se esta investigação julgar que compilou provas que atestem condutas ilícitas de alguém, isso fará parte do relatório final (igual ao do delegado!) para ser encaminhado para a autoridade competente, qual seja: o Ministério Público, que por sua vez vai avaliar se denuncia ou não perante o Poder Judiciário (este sim com poder de condenar).

E isso não é elucubração da minha cabeça, mas texto expresso da Constituição! A Constituição é expressa ao afirmar que a CPI vai terminar com um relatório e “suas conclusões, se for o caso, [serão] encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores” (art. 58, § 3º). Ou seja: é um clássico inquérito, igualzinho o que é instaurado pelo Delegado de Polícia!

E por que tanta confusão com a “efetividade” da CPI? Penso eu que por causa da complexidade do sistema de persecução penal brasileiro. O mesmo artigo citado acima afirma que as CPI’s “terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, o que pode gerar um certo bug em tudo que eu mencionei acima. Ora, se a CPI tem poder das autoridades judiciais, porque não pode condenar ninguém?

Por causa da palavra “investigação” antes da autoridade judicial. No Brasil, o inquérito policial tramita perante o Poder Judiciário! Tudo bem, pode parecer confuso em um primeiro momento, mas a lógica é que um juiz fiscalize a atividade da polícia enquanto ela investiga, de modo a evitar que a investigação ultrapasse os limites legais impostos e que as diligências que impliquem violação de direitos fundamentais sejam autorizadas por um terceiro desinteressado, a fim de dar legitimidade à diligência e evitar abusos. Basta lembrar da tormenta que é a discussão por causa do juiz das garantis do pacote anticrime, que entra exatamente neste momento.

Então tudo que o Delegado faz passa pelos “olhos” do Poder Judiciário e isso não retira a qualidade de investigação/inquérito do procedimento e muito menos lhe dá poder punitivo, que ainda é do juiz quando (e se) tudo isso virar um processo. Logo, a expressão autoridade judicial contida no dispositivo que trata da CPI não dá poder de juiz aos parlamentares, mas poderes de juiz que conduz inquérito aos parlamentares. E esse juiz não condena ninguém, pois inquérito não é processo (é pré-processo) e só se pode condenar alguém depois de garantido o contraditório e a ampla defesa em processo judicial.

Novamente o Direito e sua linguagem engajada em criar mais problemas do que resolvê-los… De todo modo, como seu viu, a Comissão Parlamentar de Inquérito é um instituto válido (não é invenção tupiniquim), mas desde que se compreenda a sua dimensão, a sua lógica, a sua formação, seus objetivos e como avaliar a sua efetividade. Depois do relatório final, não cabe mais aos seus membros agir em prol ou contra ninguém.

E para quem acha que instaurar CPI é “fazer política”, está corretíssimo! Só é preciso entender que isso não é um problema, pelo menos não em meio a um povo que compreende o valor do que é fazer política e sabe avaliar a qualidade da política produzida nestes espaços. O resto deve ser discurso da oposição…

Esclarecemos que os textos publicados são de responsabilidade de seus autores.

Escrito por: Hudson Cambraia

Formado em Direito há 13 anos, é mestre em Direito Público e pós-graduado em ciências criminais, há muitos anos atuante em gestão pública e administrativa. Possui ainda formação em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM (2019), certificação internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN (2019). Possui larga experiência em Direito Público, Constitucional, Administrativo, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade e Orçamento Público. Foi professor universitário e membro de grupos de pesquisa e estudos nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, Direito Econômico e Ensino Jurídico.

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