A incursão da Polícia do Rio de Janeiro em Jacarezinho, que resultou em 28 mortes, foi comemorada por uns e severamente criticada por outros, mas não debatida como devia”.
No dia 06/05/2021, a Polícia do Rio de Janeiro promoveu uma operação em Jacarezinho para dar vazão a uma investigação por tráfico de drogas, organização criminosa, corrupção de menores e outras acusações contra uma série de pessoas. Durante a incursão, iniciada logo no raiar do dia, houve troca de tiros e um policial morreu, assim como 27 moradores de Jacarezinho.
Ponto. Esse é o fato. A partir daí começaram os relatos, que são recortes do fato a partir de um ponto de fala pré-determinado.
O que isso significa? Significa que, de um lado, havia pessoas chocadas com um verdadeiro massacre promovido pela Polícia do Rio contra pessoas pobres, que resultou em dezenas de mortes de forma violenta e desnecessária. De outro lado, havia pessoas comemorando a ação da Polícia do Rio, pois foi realizada uma “faxina” no local, visto que as pessoas que morreram eram “traficantes” e estavam trocando tiros com a Polícia.
Tanto de um lado, quanto de outro, temos discursos, guerras narrativas com o objetivo de sustentar como verdadeiro um ponto de vista daquele que sustenta o próprio discurso. Neste ponto, já estamos distantes dos fatos e estamos lidando com relatos, que nada mais são do que recortes dos fatos.
Todo ser humano faz isso. Trabalho muito esta questão nos momentos em que debato a imparcialidade do juiz, que é uma figura mitológica que desceu do Olimpo, isento de interferências mundanas (e, portanto, menores) e, por isso, capaz de nos julgar sem afetações interiores e atento apenas aos fatos e provas. Pareceu absurdo? Se pareceu, fico feliz, pois realmente é absurdo.
E é absurdo simplesmente porque isso não existe. Logo, dar atributos mitológicos para um ser humano é a receita certa do fracasso. Por que o raciocínio seria diferente com a mídia e com as pessoas em geral? Acho muito peculiar o conceito de “mídia isenta” e de pessoas que se atêm aos fatos, pois são também dois seres mitológicos que povoam o imaginário das redes sociais e dos bares locais para criar uma narrativa aparentemente mais confiável.
Bom, considerando que este definitivamente não é um bom critério de análise, pois parte do pressuposto de que aquele que fala domina completamente o assunto tratado e não possui qualquer interesse pessoal de convencimento do interlocutor ao tratar do tema, não vou seguir por este caminho. Isso porque eu não parto de nenhum dos dois pressupostos e, logo, quero convencer o leitor do meu ponto de vista sem dominar completamente o assunto.
E não o domino simplesmente porque eu não estava lá (assim como a maiorias das pessoas que debatem o tema), não participei da organização da ação da Polícia e não conheço absolutamente nenhum dos envolvidos no caso. Sou um observador externo e, com isso, apenas pretendo deixar uma reflexão para convencer o leitor de que é possível pensar sem precisar disputar se foi massacre ou faxina.
E parto do seguinte pressuposto: qual o papel dos Direitos Humanos para pensar o episódio e os próximos que fatalmente virão?
Para isso, é importante começar do começo. Sempre que leciono Direitos Humanos, inicio o semestre dizendo que o meu maior desafio naquela disciplina é convencer os alunos de que o Datena está errado e que os Direitos Humanos (ou Direitos Dos Manos) não existem para proteger bandidos contra cidadãos de bem. Se eu alcanço este desafio, cumpri a minha função de professor.
Apesar de não ter um semestre, vou tentar condensar a minha pretensão docente e algumas linhas aqui. E o princípio é simples: o ser humano não é um anjo que desceu à terra para espalhar bondades, flores e amor pelo caminho. A gente tenta, por convenções sociais, estabelecer parâmetros de conduta que são tachados como “adequados” e, por isso, aceitáveis. E a partir destas condutas são criadas linhas, como que em uma rodovia, dentro das quais se age de modo “socialmente aceitável”.
Quem age fora desta linha é considerado à margem do que é socialmente aceitável (e daí vem a ideia de marginal). Quem anda à margem, coloca o bando em risco e, neste caso, precisa ser alijado do convívio para exemplificar aos demais sobre o risco e as consequências da conduta arriscada e para colocar à salvo aqueles que assim não se comportam.
Parece tão elementar isso, certo? É uma pena que não funciona. E não funciona por um motivo relativamente simples: quem determina o que está dentro da margem e o que está fora da margem? Por certo que é a lei, no atual Estado de Direito. E quem faz as leis? O Estado, por meio dos nossos representantes eleitos.
Olhando por este ângulo, podemos perceber que o criminoso não é uma figura nata (como o vilão dos quadrinhos), mas aquele que pratica uma conduta ou se comporta de uma forma que um texto (a lei) diz que é desviante e por isso deve ser punido. A lei cria o criminoso e o crime! É muito importante entender isso para entender Direitos Humanos!
E nesse pacote de ser criminoso já coube de tudo: ser mulher, ser negro, ser homossexual, ser pobre, ser empresário, ser alcoólatra, vender whisky, vender comida fora do preço, violar as regras do casamento cristão, ser cristão, ser muçulmano, ser judeu, ser ateu, ser religioso e mais ser um milhão de coisas.

Imagem Depositphotos
Nos Estados onde o Boko Haram (dá um google aí!) determina o que entra nas linhas da estrada é um pouco complicado ser cristão. Para este grupo, um cristão é um criminoso perigoso, pois assim o diz a sua lei. E caso um cristão seja pego nas suas dependências, será marginalizado como deve ser feito a um criminoso e, com franco senso de justiça, degolado e queimado em praça pública, para que a sociedade de bem volte à paz social devida e deixe de conviver com o risco da sua convivência.
Achou isso uma barbárie? Imagino que sim. Muito provavelmente porque no meu exemplo o criminoso é você ou muita gente que você gosta. E quando nós somos o perigo para a sociedade, fica mais fácil entender que a ideia de faxina é um pouco enviesada, dado que a faxina é de quem para quem? Provavelmente não de um dos nossos…
Mais do que isso, a gente começa a perceber que julgar razoável que o Estado tenha poder de vida e de morte sobre alguém porque este alguém é criminoso, implica, na prática, dar um cheque em branco para o Estado determinar quem estará à margem da sociedade e, por isso, pode ser eliminado.
Mas Hudson, você pode me perguntar, são traficantes? Portavam fuzis? Bom, a isso, não posso responder com clareza, pois como disse, eu não estava lá. A questão é que, independente disso, uma pessoa com um fuzil na mão pode ser eliminada pelo Estado?
Por este mesmo Estado que sustenta que devemos liberar o porte de arma de forma irrestrita para proteger o cidadão de bem? Quem vai fazer a seleção de quem atira e não atira? E não estou aqui sustentando ingenuamente que o Estado deva ser omisso, mas apenas especulando sobre o fundamento da ação deste Estado e se as pessoas que criticam ou elogiam pararam para avaliar sobre este fundamento.
Na prática, a questão de o morto ser criminoso ou não é muito pouco relevante (inclusive porque entre os mortos havia um policial e ninguém aqui duvidará da índole do profissional em atividade profissional). O que é relevante é que os Direitos Humanos (e não os Direitos Dos Manos) tratam de Direitos Civis, que atingem a vida civil de todos os cidadãos (os de bem e dos de mal), mas desafortunadamente são lembrados apenas em momentos criminais, o que cria este viés desnecessário e improdutivo.
Direitos Humanos são direitos meus e seus, é o Direito de viver, de ter o mínimo de suporte em saúde, o básico em alimentação e moradia e mais uma lista interminável de coisas que todos nós precisamos. Isso são Direitos Humanos. E no meio desta lista está o Direito de ser julgado pelos crimes cometidos. Ou seja, Direitos Humanos não são Direitos Dos Manos, mas também são Direitos Dos Manos, se permitem a triste ironia.
Criminoso tem Direito Humano? Claro que tem. E tem por um motivo simples. É preciso superar esse maniqueísmo de que uma pessoa “é um bandido”, como se fosse algo genético, inato a determinadas pessoas e imune a outras. Esse raciocínio, de modo muito macabro, mostra como o pensamento ainda é pautado pela tese de Cesare Lombroso, criador do conceito de “Homem delinquente” e “Mulher delinquente”.
Esse pensamento consolidou a ideia de que pessoas com determinadas característica nasciam criminosas, como em um estado primitivo de desenvolvimento humano (denominado por ele de atavismo). Para surpresa de absolutamente ninguém, o delinquente de Lombroso era negro, pobre, estrangeiro e mais uma série de característica que ainda rondam as nossas páginas policiais.
Ocorre que isso é uma falácia, pois se esquece do que tratamos lá atrás, sobre onde nasce o desvio – que não é no indivíduo, mas na lei que assim o identifica. E mesmo assim, ainda que diante de um comportamento desviante considerado absurdo, não se pode resumir uma vida inteira em um ato, de modo a demonizar um ser humano por um ato. Daí porque “fazer faxina” não é a ação mais adequada do Estado.
Eram criminosos? Não sei. Mas ainda que fossem, eram criminosos pais, criminosos filhos, criminosos irmãos e etc. Como diz Arnaldo Antunes em uma de suas canções, até Hitler teve mãe. O que ele quer dizer com isso: mesmo o mais pavoroso dos seres humanos, é um ser humano também.
Ou entendemos isso ou corremos o risco de sermos nós os próximos criminosos das próximas leis que podem vir. E se submeter à própria lei costuma ser o mais amargo dos venenos. E eu, que não sou um cidadão de bem por completo (e tenho consciência disso apenas de não sofrer qualquer tipo de ameaça legal em razão da minha cor, do local onde moro e da minha profissão), prefiro que o Estado parta do pressuposto que é melhor não matar os desviantes. Vai que alguém inventa que café deve ser incluído na Portaria n. 344/1998 da Anvisa e eu acabo tendo que virar traficante também…