A fala do Ministro da Educação de que o ensino superior não deve ser para todo mundo demanda uma reflexão.
- Para nos situarmos…
Recentemente, o Ministro da Educação se manifestou no sentido de que o ensino superior não deveria ser para todo mundo, mas para poucos. Emendou ainda que tem muito Advogado e Engenheiro dirigindo Uber e que bom mesmo são os cursos técnicos, pois não falta emprego para o técnico. Logo, se o Advogado ou o Engenheiro fosse técnico em informática não estava dirigindo Uber, mas trabalhando de técnico.
Bom… vamos tentar pensar sobre isso por alguns vieses. E aí vamos separando cada um deles para não virar um balaio de gato. Primeiramente, você pode pensar: credo Hudson, muda o disco. Lá vem você falar do Ministro da Educação de novo (porque na semana passada o texto foi dedicado o Sr. Milton). Desculpa, mas o moço dá muita margem e aí fica difícil fingir que eu não ouvi o que eu ouvi.
É tipo uma família com renda mensal de R$ 6.000,00 alugar uma casa por R$ 15.000,00 por mês e isso não te chamar a atenção. A gente pode até tentar, mas que o diabinho do canto do ouvido fica assoprando pensamentos maldosos fica… Feita a explicação inicial, eu quero falar de algumas coisas. Primeiro de onde vem a ideia do Ministro; em segundo lugar, porque a ideia pega tanto no Brasil; e, por fim, porque a ideia dele pode ser aproveitada (e eu coloquei aqui de propósito para te deixar curioso e chegar ao final do texto).
- De onde viemos para chegar aqui…
O título do texto é uma referência ao gradil que emoldura a porta de entrada do campo de concentração de Auschwitz I (sim, Auschwitz não foi “apenas” um campo de concentração cara pálida, mas uma rede de campos) e significa “o trabalho liberta”. É, para dizer o mínimo, muito sadismo falar que o trabalho liberta em um campo de concentração em que pessoas eram trituradas vivas…
Mas o ponto é que essa frase não foi inventada pelos nazistas. A frase intitula um texto do alemão Lorenz Diefenbach, que é bem anterior ao regime nazista e foi apropriada por organizações nacionalistas arianas previamente à ascensão ao poder do partido nazista em 1933. Só para te ajudar a não perder o fio da meada daquelas aulas apoteóticas de História que você assistiu (e gravou na memória!) na 8ª série: Hitler foi eleito. Sacou? Ele foi eleito! Obviamente como o salvador para recuperar a Alemanha para os alemães contra o inimigo do povo. Acho que eu já ouvi isso em algum outro lugar, mas a memória está falhando agora…
E se você acha que essa ideia foi superada junto com o nazismo, você está meio perdido na vida meu filho. Essa ideia só foi reforçada ao longo dos anos. E para te provar, eu quero que faça um auto exame de consciência (quem tem a partir de 40 anos, experimenta fazer das mamas também, porque é assim que identifica câncer) e reflete comigo se você nunca parou para pensar que preso tinha que trabalhar? Pois é. Se a resposta foi positiva, você está de acordo com este pensamento de que o trabalho liberta e dignifica.
Seu pensamento encontra respaldo na lei, fique tranquilo. E ele é compatível com esta ideia de que a pessoa só pode se tornar uma pessoa melhor se ela se propuser a realizar um trabalho “honesto”. Ufa, cheguei onde eu queria: mas de que trabalho estamos falando? Volto a pergunta para você: gostaria de ver um ex presidiário juiz? Ou quem sabe um ex presidiário militar? Talvez delegado de polícia? Ou engenheiro em uma estatal como a Petrobrás? Quem sabe operador do sistema de segurança da informação do Governo do Estado?
Errei todas? Acredito que sim… porque quando pensamos em seres subalternos, eles precisam permanecer subalternos. Eles se dignificam por sua docilidade e não por sua independência. O trabalho liberta das grades (em tempos de normalidade institucional apenas), pois tem-se à percepção de que os corpos dóceis para o trabalho (e obviamente que essa frase não é minha, mas do Foucault) são bem quistos pelo Estado e pela “sociedade de bem”. Daí porque toda essa ideia gira em torno da noção de que é bom que todo mundo trabalhe, mas não que todo mundo tenha um trabalho bom… E aí você começa a perceber que esse glamour colocado em trabalhos que ninguém quer fazer (tipo entregar Ifood a pé), é um mecanismo interessante para disfarçar esta ideia de que na verdade bom mesmo é quem executa o trabalho “sujo” (no sentido literal do termo mesmo), preferencialmente sem muito questionamento. E se receber pouco por isso sem reclamar fica mais legal ainda.
E aqui a gente faz a primeira conexão com a fala do ministro da educação. A ideia dele é de que educação é para o trabalho e não para pensar. Logo, uma educação que não te faz arrumar um emprego, não serve para nada. Ainda que ela te ajude a pensar (algo supérfluo na mente desenvolvida do Sr Ministro). Ele não está sozinho e nem inventou isso. E por que ele não está sozinho? Porque essa lebre foi vendida há um tempo e colou demais. Vou te contar…
- Por que tanta associação de ensino superior com emprego?
O déficit educacional no Brasil assusta. Os índices de analfabetismo são bizarros e ainda temos números falacioso

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que ocultam um dado tão alarmante quanto ignorado: o número de analfabetos funcionais é endêmico. Temos um número absurdo de pessoas que passaram pelo ensino regular inteiro e simplesmente não são alfabetizadas. Conhecem as letras do alfabeto e os algarismos, mas são incapazes de articular ideias, reconhecer contextos, aplicar intertextualidades, elaborar com ironias e abstrair pensamentos e conclusões de argumentos genéricos. E daí você começa a sacar porque os grupos do whatsapp fazem muito mais sucesso do que a fala de um especialista…
E isso ocorre porque os professores do ensino fundamental simplesmente não podem aplicar os seus conhecimentos em sala de aula e exigir dos alunos a sua participação. Primeiro porque as condições pessoais e sociais de muitos alunos são simplesmente proibitivas. A pandemia doeu em muita gente que perdeu a refeição do dia que era servida na escola. Segundo porque o Estado não tem uma política real de produção de saberes e trabalha para que isso se mantenha assim. Eu ia me delongar por aqui, mas o desenvolvimento desta ideia merece um texto próprio e o objetivo aqui é outro. Com o que temos dá para concluir o que eu preciso: a gente vive em terra arrasada, com uma massa gigantesca de analfabetos e analfabetos funcionais. Soma-se a esta massa, temos outro contingente relevante de pessoas com formação básica e média.
Neste contexto, cunhou-se a ideia de que ter uma formação serve para se “destacar no mercado de trabalho” e se tornar um “profissional desejado” e, via de consequência, “garantir um emprego”. Pode concordar que eu já estou habilitado a arrumar um emprego no setor de marketing de qualquer faculdade do Brasil? É só isso que elas falam!
Obviamente que as instituições beneficiadas por estes mecanismos (com recebimento de altas quantias em verbas federais) ampliaram a ideia e passaram a institucionalizar a mercancia de diplomas. Há mais investimento nas instituições de ensino superior em mecanismos de RH do tipo “conquiste uma vaga”, “temos parcerias de estágios e empregos”, “entre e faça parte do nosso programa de trainee” e etc, do que na formação de potenciais de construção de conhecimento.
Não se produz conhecimento novo, não há pesquisa, não há extensão e, principalmente, não se ensina a aprender. As instituições, mais interessadas na bolsa do aluno do que no aluno, percebendo que há um déficit prévio, simplesmente fazem vistas grossas para agradar à “clientela” e despejam uma galera com diploma, mas sem o conhecimento agregado que ele deveria ostentar. Afinal, é diploma que proporciona o emprego e não o potencial intelectual dele derivado.
As faculdades se tornaram grandes cursos técnicos de “apertar parafuso”. Traduzindo para o juridiquês (já que este é o meu quadrado), a faculdade de Direito ensina procedimentos e como passar na prova da OAB e não a pensar criticamente o Direito. Se o STF falou, não pode fazer monografia falando o contrário, afinal o entendimento “já está pacificado”. Estamos formando escravos da opinião alheia, sem a habilidade de criar conhecimento novo para superar o velho. Mas tudo bem, você tem um diploma. Quem é o prejudicado nessa história toda? O aluno, que já ganhou uma rasteira no ensino básico e agora toma outra aqui. Por que? Porque no Brasil o diploma é apenas um dos itens que compõem as suas chances de inserção no mercado de trabalho. Junto com ele vem o elemento sorte (não se engane, de todos eles, este tem um peso muito maior do que se imagina), seu sobrenome, o cargo que seu pai ou sua mãe ocupa, a quantidade de herança que você ostenta, os padrinhos políticos que você amealhou, a sua rede de contatos, o tempo e o dinheiro disponível que você tem para estudar para um concurso, etc.
E daí chegamos à trágica conclusão: curso superior não serve para arrumar emprego. Nunca serviu! O problema é que ser honesto no Brasil dá prejuízo demais. É preciso mentir, alimentar esperanças e vender sonhos. E isso tem um efeito muito perverso: temos uma verdadeira pressão para se fazer um curso superior, mesmo para as pessoas que ainda nem sabem o que querem fazer da vida. Por outro lado, os mecanismos de acesso vão ficando cada vez mais desiguais. Veja-se a ascensão de cursos ainda mais elitizados e escolas de “padrão internacional”, cobrando fortunas. A ideia é essa mesma: aumentar o fosso.
O que ocorre então? Depois desta espiral de falácias educacionais, temos dois extremos: 1. Quem conseguiu ascensão social com esses programas é usado para falar que deu certo. 2. Quem não conseguiu ascensão é usado para falar que deu errado. E as duas conclusões estão erradas! Porque o ensino superior, em si, não foi causa motriz e determinante do sucesso do número 1 ou do fracasso do número 2. Então quem quer um emprego não deve fazer um curso superior? Claro que não é isso. O ponto é que ele não é chave mágica para o tão sonhado emprego, assim como também não é o curso técnico. São elementos agregadores. Se a mente brilhante que ocupa atualmente a cadeira do MEC encher o país de cursos técnicos, teremos uma geração de técnicos desempregados, nos mesmos moldes que ele diz hoje. E aqui entre o nosso último tópico…
- Por incrível que pareça, dá para aproveitar algo da ideia do Ministro…

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Antes de tirar conclusões precipitadas ao meu respeito (afinal, eu tenho uma reputação ilibada a zelar e isso dá um trabalho do cão…) pensa na premissa primeiro e depois a gente volta na conclusão. Por que o Ministro acha que o ensino superior não deve ser para todo mundo? Resposta do milhão: porque ele pertence à classe que se privilegiava de quando ninguém tinha curso superior e hoje não dá mais.
Percebeu? Apesar de toda a falácia educacional (que eu vou desenvolver melhor em outro texto), tem muita gente que consegue, com esforço pessoal, aquela sorte marota e alguns outros ingredientes, abrir caminho e fazer sua trilha. Isso tem nome: concorrência!
Ele não quer que o ensino superior seja para as pessoas realmente vocacionadas à pesquisa, produção de conhecimento, extensão e divulgação acadêmica. Ele quer o ensino superior para os seus poucos, para que sejam sempre poucos e, por isso, independente da capacidade intelectual real, sejam caros. Esse incômodo é o mesmo que eles têm de trombar com a empregada na Disney ou no aeroporto… Imagina ter que tolerar que seu pimpolho divida as cadeiras da faculdade com o pimpolho do porteiro. É um acinte para o sangue azul que corre em algumas veias (e que não me entendam mal os cruzeirenses)…
Então o que a gente pode fazer é mudar a premissa. E eu o faço com base em algumas experiências pessoais. Eu já tive agradáveis oportunidades de ter contato pessoal e profissional com pessoas tão inteligentes quanto a cadeira que eu estou sentado neste momento. Na verdade ouso dizer que a cadeira é muito mais funcional do que as pessoas que me vieram à mente e a concorrência acaba sendo desleal em favor da cadeira, pois ela tem muita valia.
Ocorre que essas pessoas, diferente da minha cadeira, tinham um curso superior e, por causa do seu pedigree ou equivalente, tinham boas posições na vida. Essa ideia me ocorreu no dia em que eu percebi que estava em uma sala com mais 3 pessoas e eu era o único que não tinha sobrenome, não era filho de “ninguém”, não tinha “padrinhos”, não conhecia o exterior e não tinha indicação. Em um primeiro momento me revoltou e causou indignação, mas em um segundo momento me trouxe um certo alívio. O alívio veio da constatação clara de que, apesar dos meus diversos “nãos”, eu era a pessoa mais bem preparada na sala, com maior capacidade intelectual e melhor desenvoltura para o desenvolvimento das ideias necessárias para aquele momento. Ou seja, o que esse povo tem medo é de concorrência! Veja só que curiosidade liberal (e não eram eles os liberais???).
Daí que a premissa tinha que ser absolutamente invertida, para que a fala do Ministro tivesse sentido. Explicando melhor: todo mundo tinha que entrar igual na universidade. As bolsas deviam ser fixas e o critério de avaliação dos cursos devia ser a produção de conhecimento realizada, o desenvolvimento acadêmico dos alunos e os resultados obtidos. Tínhamos que começar a fazer isso lá na base, desde o ensino básico. ProUni para ensino infantil, fundamental e médio. Queria muito ver o filho xexelento do Ministro estudando ao lado do filho do porteiro e da empregada doméstica, com os mesmos professores e mesmo conteúdo, mesmo suporte e mesma avaliação. Imagina que concorrência bonita de se ver?
Para encerrar com chave de ouro, todo mundo devia entrar na universidade. Indistintamente! Afinal, educação é um direito universal. Aí lá dentro as afinidades e potenciais seriam selecionados em pé de igualdade. Pensa aqui no meu fantástico mundo de Bobby em quantas mentes brilhantes o país perdeu porque simplesmente não tiveram sequer a oportunidade de passar na porta de uma universidade! Quantas teorias não foram desenvolvidas porque pessoas brilhantes com mentes teóricas altamente desenvolvidas estavam necessitadas demais em buscar alimento para pensar em teoremas. Quanta falta de oportunidade não matou teses que talvez nunca vamos conhecer!
Realmente o ensino superior não devia ser para todo mundo, mas para aqueles que tivessem afinidade com o saber acadêmico (que nada mais é do um viés da vida que algumas pessoas assumem e outras não). E isso sem qualquer relação com emprego/empregabilidade, mas com saber, pesquisa e auxílio na melhoria das condições de vida das pessoas em geral.
Da mesma forma, a condução das políticas educacionais do País não deveria ser tratada como saber comum, desses que chega pelo grupo de whatsapp da família. E, obviamente, era de bom tom que o marujo desse barco não fosse o tio do zap…