
HUDSON DE OLIVEIRA CAMBRAIA – Mestre , Advogado atuante em Direito Público, Constitucional, Administrativo e Penal, Professor Universitário.
A Lava Jato nasceu de uma investigação de desvio de verbas na Petrobras, por meio de contratos superfaturados. Isso lá pelos idos de 2014.
Naquele contexto, é preciso se recordar que estávamos ainda no calor dos protestos de 2013 por um país melhor e a operação surgiu como uma ação enérgica contra as forças políticas corruptas do nosso país. Considerando a dimensão dos contratos e da hierarquia política e empresarial dos envolvidos, todos começaram a entrar em um certo estado de epifania coletiva.
Rapidamente a operação ganhou todas as páginas dos jornais e os seus protagonistas se tornaram verdadeiros heróis nacionais. A Força Tarefa da Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro surgiram como esperança de varrição da corrupção do Brasil.
É importante destacar, neste momento inicial, que ninguém (absolutamente ninguém!) na mídia questionou, sequer por curiosidade, porque um caso da Petrobras, envolvendo uma lavagem de dinheiro em um posto de gasolina em Brasília (sim, daí o nome…), estava sendo processado em Curitiba/PR.
Não tinha problema. O importante é que a corrupção estava sendo combatida de verdade. Esse efeito midiático é um componente muito importante para entender este “caldo” todo.
Ocorre que neste contexto havia explicação. E aqui é importante fazer um recorte técnico: o Estado é obrigação a entregar a Justiça em todo o país. O problema é que o Brasil é um país de dimensões continentais e caso não haja organização nesta “entrega de Justiça” estamos diante de um perigo real de caos.
É neste ponto que surge a matéria processual da jurisdição e competência. Para o Direito, competência nada mais é do a parcela de poder de “dizer o direito” que cada órgão judiciário possui (em latim “iuris dictio”, que faz derivar o nome da nossa “jurisdição”). Essas “fatias do bolo” são divididas de acordo com a hierarquia judiciária (como os tribunais que possuem a competência de julgar quem tem prerrogativa de foro), de acordo com a matéria (como os tribunais trabalhistas, eleitorais, militares e a justiça comum) e de acordo com o território (como são divididas as justiças ao longo do nosso vasto território, de modo a saber qual juízo vai julgar o caso de cada lugar).
Este último item é muito importante para a nossa conversa… Segundo os livros de processo, essa última competência (a territorial) é a que menos prejuízo impõe ao acusado, caso seja violada. Tanto é que a declaração de incompetência territorial não afeta o conteúdo do processo, pois se entende que é uma incompetência “relativa”. Assim, sem prejuízo para o acusado, mesmo um erro de território não é capaz de impedir um julgamento.
Por outro lado, as demais competências são consideradas indisponíveis e, por isso, não admitem “falhas”. Um erro de incompetência por prerrogativa de foro ou por matéria torna tudo o que foi produzido absolutamente nulo (daí o nome competência absoluta). Ouso discordar um pouco dos livros…
Se coloque no lugar do acusado (o que para alguns parece absurdo, mas em um Estado Democrático de Direito qualquer pessoa, inclusive eu e você, pode ser processada criminalmente) e imagine receber uma citação de que há uma denúncia apresentada perante o juízo de Chapecó/SC, mesmo sendo a residência e permanência do acusado em Macapá/AP. Dá para perceber que o direito de defesa ficará um pouco prejudicado.
Exatamente por isso, essas hipóteses de “deslocamento” de competência são excepcionais e assim devem ser tratadas, incidindo quando há o que o Direito denomina “conexão” e “continência”. Desnecessário entrar aqui em todas as hipóteses, pois basta uma para entender o imbróglio que a Lava Jato entrou: a conexão probatória.
Essa conexão existe para unir processos que seriam inicialmente julgados por juízes em territórios distintos, quando a prova de um fato/processo interferir na prova de outro fato/processo. Para evitar conflito de decisões e garantir certa economia processual, os dois fatos são reunidos em um único processo.
Para clarear com um exemplo, a prova do crime de corrupção ativa (pratica pelo particular) faz prova do crime de corrupção passiva (praticada pelo servidor público), pois, afinal, não existe corrupto sem corruptor. Logo, essas duas pessoas, apesar de praticarem crimes distintos, são processadas, de regra, em um único processo. E se elas estão em locais territorialmente distintos, um dos locais será o “eleito” para sediar o processo e julgamento.
Essa é a gênese do deslocamento de um caso de um lugar para o outro. E o que aconteceu com a Lava Jato?
Um volume grande de provas do início da operação foi obtido com as famosas delações premiadas, que nada mais é do que um “negócio” realizado entre acusador e acusado para obter mais provas de outros crimes ou de outras pessoas envolvidas no mesmo crime. Em troca, o acusado recebe os mais variados benefícios, como redução de pena, substituição de pena de prisão por pena alternativa, cumprimento de pena em regime menos rigoroso e etc.
O ponto pouco divulgado é que o acusado é colocado em um verdadeiro dilema quando da negociação sobre a delação: tem que falar tudo que sabe. Se esconder alguma coisa, pode perder todos os benefícios e a delação não é homologada. Daí você imagina um agente político no Brasil, com a corda no pescoço porque está envolvido na maior operação anticorrupção do país e com chances muito pequenas de sair ileso considerando o contexto que a operação ganhava…
Obviamente, muita gente falou o que viu, o que ouviu dizer e até o que não viu para ganhar alguns benefícios processuais. E cada moeda jogada para cima nesse cassino virava mais uma fase da Lava Jato. Cada “fase” (e já são mais de 80), na verdade se tratava de um processo inteiramente novo, de um caso novo, de pessoas novas, mas que tinham sido mencionados em alguma delação de pululava entre os processos.
E esse item era considerado a “conexão probatória” para levar os processos para a 13ª Vara Federal de Curitiba. E nessa toada, Curitiba foi julgando processos e pessoas de todos os lugares do país e de fora dele. Curiosamente, e sem maiores explicações para o grande público, processos pouco interessantes iam ficando para outros juízos espalhados por aí (e nestes ninguém pedia conexão probatória) e, principalmente, nos casos em que havia prerrogativa de foro (o midiático foro privilegiado) também ninguém pedia conexão probatória.
E por que não? Oras… porque pela lei processual, se tem conexão probatória entre um tribunal (de hierarquia superior, aqueles que julgam quem tem prerrogativa de foro) e um juízo de primeira instância (como a 13ª vara de Curitiba), adivinha quem arrasta os processos para si? Sim, o tribunal superior.
Daí concluímos que, nestes casos, se tivesse pedido de conexão probatória, a 13ª Vara de Curitiba, utilizando os mesmos argumentos utilizados para julgar todo mundo, ia perder todos os processos. O caso mais emblemático foi o do ex Presidente da Câmara Eduardo Cunha. Enquanto permanecia a sua prerrogativa de foro perante o STF, a Lava Jato não fez absolutamente nada. Dias depois da sua renúncia, a prisão do ex Deputado estava decretada.
Não precisa elucubrar muito para concluir que os membros da força tarefa e o então juiz do caso se tornam cada vez mais heróis nacionais. A cada prisão, a cada condenação, cada fase da lava jato era um bálsamo para a desgastada população brasileira. Eles perceberam o poder da opinião pública e colheram os louros da fama. Tanto, que fizeram de tudo para manter a sua competência e ampliar a sua competência.
A meta era fazer da lava jato o centro de operações para eliminação da corrupção no Brasil. Como? Violando a lei. Eis a forma tupiniquim de resolver problemas!
E fizeram isso acreditando na força e no apoio da opinião pública, dos meios de comunicação e de uma crescente corrente política alinhada a um conservadorismo que estava em franca ascendência. Ou seja, o contexto era bom. As palestras anticorrupção aumentavam significativamente, a visibilidade e alguns prêmios apareciam e vaidade (sempre ela…) solidificava a autopercepção de que (ocultando o que ocorria nos bastidores) seria possível mudar o Brasil.
O problema é que a opinião pública, a mídia e parte da classe política apoiadora começaram a se afastar dos confetes lavajatistas quando um evento absolutamente inesperado aconteceu: o vazamento das conversas privadas (ou seja, dos bastidores) dos membros da força tarefa e do então juiz da Lava Jato. Para quem teve acesso, é algo um tanto quanto escandaloso.
E para quem questionou porque tanto estardalhaço com as conversas, basta se colocar no lugar dos acusados. Se imagine sendo acusado por qualquer coisa por uma pessoa que troca figurinhas com quem vai julgar essa sua acusação e essas duas pessoas (acusador e julgador) combinam como que os processos vão tramitar. Consegue perceber o tamanho microscópico das possibilidades de equilíbrio neste processo e de êxito da defesa?
É por isso que não pode. Não pode porque quem faz a prova na faculdade não pode corrigir, exatamente porque não tem condição de avaliar honestamente os erros e acertos, dado que não é comum a qualquer ser humano a autocrítica real. E se na faculdade só pode corrigir a prova quem não fez a prova, no processo penal é a mesma coisa: só pode avaliar a prova quem não fez a prova e não se importa com o resultado dela. Trocando em claros miúdos, é disso que se trata a imparcialidade do julgador.
E qual a implicação desta falta de imparcialidade (ou parcialidade, que dá na mesma)? Anula tudo… E anula porque a conclusão de que tudo o que foi produzido ocorreu por ato interessado (e, portanto, parcial) do julgador, não tem cabimento manter a integridade de um processo que nasceu viciado e foi conduzido com vício. E não se trata de um vício qualquer, mas de um vício que atinge um dos pilares da Justiça, como estabelecido na Constituição (o tal livrinho que, em tese, coloca ordem na casa).
Se o juiz tem interesse no caso, se troca informações e estratégias com a acusação, então tudo que dali saiu está errado e não se pode admitir que o Estado seja beneficiado (em prejuízo do cidadão) por atos violadores da lei e da Constituição. Seria, no mínimo, um contrassenso que a Justiça admitisse a validade de atos judiciais praticados por alguém que estava em declarada violação das normas vigentes.
E é aqui que entra a decisão do Min. Edson Fachin do dia 08/03/2021. O Min. Fachin é conhecido lavajatista e sempre apoiou as incursões da força tarefa (e não estou aqui me referindo às práticas de bastidores, pois estas foram desveladas recentemente e tomou a todos de surpresa, o que não seria diferente com o Ministro). Diante da iminência da declaração de suspeição do ex juiz Sérgio Moro (e vimos acima que era inevitável), o Min. Fachin percebeu a hecatombe que esta decisão poderia gerar.
Isto porque a declaração de suspeição levaria à perda de absolutamente todo o material produzido na operação. O Min. Fachin então, em defesa da lava jato, anula as decisões (e não os processos) dos processos do ex Presidente Lula, sob o argumento da incompetência do juízo (fato que todo mundo que já sofreu com a matéria de competência sabia, mas o contexto político não ajudava).
O que ele pretendia com isso? Acabar com a possibilidade de discussão sobre a suspeição do ex juiz Moro, pois se ele não era o juiz competente e se as decisões dele não tinham mais valor, não faria sentido discutir a sua suspeição. E o Min. fez isso declarando a perda de objeto dos processos que discutiam a parcialidade do ex juiz Moro e mandando remeter os autos (com todas as provas intactas) para outro juiz em Brasília, para que o caso fosse rejulgado sem o peso da discussão de parcialidade do julgador.
Se não tem decisão do ex juiz Moro válida nos autos, não tem suspeição para julgar. É disso que se trata a perda do objeto.
Ao contrário do que os defensores da lava jato julgaram, o Min. Fachin estava tentando salvar a operação e não sabotá-la. Ao contrário do que os críticos da lava jato julgaram, o Min. Fachin não estava dando uma decisão favorável ao ex Presidente Lula. Em suma, quase ninguém entendeu nada…
Só que os Ministros da Segunda Turma do STF entenderam e o Min. Gilmar Mendes, ferrenho crítico da lava jato, cuidou de correr e pautar os processos de suspeição do ex juiz Moro. E o fez porque queria dar o “recado” de que os abusos não passariam “em branco” e que não seria possível fazer manobras para garantir a impunidade dos atores deste teatro (curiosamente famosos por ter discursos contra a impunidade).
E o resultado saiu ontem: o ex juiz Moro foi julgado suspeito e não tinha como ser o contrário. Logo, o que perdeu o objeto foi a decisão do Min. Fachin, pois não foi levada ao plenário para sua manutenção ou rejeição. Nessas idas e vindas, ocorreu o que o Min. Fachin quis evitar, ou seja, a evidente derrocada da blindagem que a operação lava jato tinha perante os tribunais e a oportunidade de anulação de praticamente todos os processos que ali foram julgados.
Não há dúvida de que todos os acusados farão o mesmo caminho do ex Presidente Lula e, provavelmente, terão êxito na sua empreitada. Esse movimento ficará a cargo das disputas ideológicas e políticas, que andam ao sabor dos ventos atuais, mas sempre visando os ventos futuros.
Pelo Direito, por doloroso que se possa pensar, é preciso concordar que o resultado está correto. Incorreto é querer fazer de um processo palco político; incorreto é buscar combater o crime com violações da lei; incorreto é usar a máquina do Estado e da Justiça para fazer marketing. Nenhum Estado de Direito admite essas fantasias, pois no momento em que usamos da mesma moeda do criminoso para combate-lo, não nos tornamos justos, mas criminosos como aquele que pretendemos combater.
No fim, fica a evidência de que os envolvidos na força tarefa não eram corruptos como aqueles que perseguiam, mas se corromperam pelo sucesso, pela visibilidade, pela vaidade e pela fragilidade de limites que as autoridades experimentam. E esse é o ponto para pensarmos e amadurecermos de agora em diante: se queremos um Estado igual para todos, queremos ser alvo de autoridades que podem tudo ou de autoridades que podem o que a Lei autoriza? E quem julgar que a autoridade pode tudo para combater a criminalidade, não só é ingênuo de se julgar acima de qualquer investigação, mas também é ingênuo por não perceber que a autoridade que pode tudo, pode inclusive inventar prova que não existe para transformar qualquer inimigo em criminoso. E criminosos são condenados pela Justiça, pela mídia, pela sociedade, pela família e pelo mercado de trabalho. E a absolvição só vem da Justiça.
PROF. HUDSON DE OLIVEIRA CAMBRAIA
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