A Constituição de 1988 e o seu calvário de afirmação.

https://revistastatto.com.br/lifestyle/comportamento/o-poder-de-superacao-dos-desafios/ + Constituição da República Federativa do Brasil
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 faz neste 05/10/2021, 33 anos de promulgação. É um documento com uma carga tão intensa de complexidade, com tanta história na sua fundação, tanta teoria para sustentar as suas bases e tanta construção intelectual para a sua execução, que seria muita pretensão imaginar que passaria ilesa.
No início era apenas o verbo… Nasceu na sarjeta, fruto da dor de um povo que padecia sem qualquer perspectiva de futuro. Foi concebida nas aspirações de um Novo Tempo, com testemunhos e testamentos superadores da lógica punitiva, hierárquica e violenta até então existentes.
Pautada na igualdade, na dignidade e horizontalização das relações, nasceu na ingenuidade da pretensão de um tempo bom, com novos ares e novas aspirações de país. Obviamente, seu poder e sua benevolência, suas pretensões igualitárias e seus mecanismos de pacificação não passariam ilesos às intenções não publicáveis de tantos que muito se beneficiavam d’ancien régime.
Logo ainda criança foi atacada e perseguida, colocando à prova, por choque institucional, o seu parco sistema imunológico. Ainda criança, incapaz de se defender sozinha, teve a colaboração de tantos que nela criam piamente para se manter de pé. Não há dúvida: a fé a manteve viva em seus primeiros anos de vida; a fé naquilo que estava no porvir, nas suas promessas e nas suas potencialidades.
Até então, não havia muito a ser entregue e as bases eram puramente sacerdotais. A realidade, crua, não dava muita margem para comemorações, mas apenas para a esperança de que dias melhores poderiam vir. E assim, com a benevolência de uns, os interesses de outros, a conjugação de muitos fatores, algumas corridas às escondidas, a criança sobreviveu.
A partir daí, suas andanças pelo país mostraram a falta que sua presença faz e a cada página virada, cada esquina dobrada, cada beco e viela percorrido, havia lágrimas, sangue, suor e dor, tudo a esperar pelas promessas. Vez ou outra se estava ali a olhar para o passado recente e a vislumbrar o futuro vindouro, em um misto de apreensão, dúvida, orgulho e taquicardia.
Houve momentos de epifania, quando milagres pareceram se materializar à nossa frente, tornando a vida mais leve, acolhendo os mais necessitados e permitindo que olhássemos para as promessas com vigor, mais concretude e mais certeza. A palavra ia, vagarosamente, se convertendo em ato. E a cada ato a fé crescia.
Obviamente que nem tudo eram flores. Houve tantos momentos de questionamentos e de descrença quanto os de esperança. Os problemas do povo estão aí, porque simplesmente não os resolve? Havia urgência, pois quem tem fome não tem tempo e muito menos paciência para esperar o tempo que não é o do homem, que não é o da fome.
Houve aqueles que se dispuseram a modificá-la inúmeras vezes. A essência, muitas vezes, atrapalhava outros objetivos maiores. A concretude das defesas não é suficiente para impedir o abalo das investidas. As tentações são muitas e para quem está no deserto, aparentemente, qualquer oferta pode parecer tentadora.
Aos solavancos e com dor, em períodos de longas provações, com alterações de forma (mas pouco de conteúdo), o texto foi amadurecendo, ganhando envergadura e eloquência. Passamos a percebê-lo de forma mais intensa em nossas vidas. Acompanhamos seus passos, discutimos seus defensores e seus críticos, levamos os seus feitos para deliberação em praça pública.
Não havia dúvida, apesar de ainda jovem, havia ali um amadurecimento que nunca havíamos visto, o que reforçava a esperança na sua presença e perenidade. Entretanto, assim como o amadurecimento leva à solidez, a solidez leva à distensão de interesses.
A falta de norte permite a convivência de inúmeros caminhos, ainda que parasitários. A consolidação de um norte cria um corte muito profundo que demarca o espaço congruente com aqueles que pretendem defender a palavra e aqueles que pretendem eliminar os percalços que a palavra impõe.
Ser base é difícil. Exige sacrifícios e imposições muito pouco convidativas para quem se beneficia da manutenção do status quo. E, obviamente, a centralidade da palavra leva à centralidade das atenções, das críticas, das acusações e das difamações.
E foi neste contexto que a palavra começa a ser atacada, deslegitimada e negada. A intenção da esperança pouco importa, dado que o volume de informações e desinformações é tão impressionante que a noção de verdade e mentira se torna nebulosa.
As promessas não cumpridas são questionadas; as promessas cumpridas são questionadas; o que foi feito é como se não existisse; e a pressa pelo tempo se torna em mote para o apedrejamento. Toda a longa construção, com a dimensão que alcançou, de um dia para o outro, ganha ares de circo, como se tudo o que estivesse à nossa volta fosse um falso palco com traquinagens para cerrar nossos olhos da vida real.
O inimigo tem seus caminhos e a enganação é sempre o mais odioso e o mais fácil, dado que parte do cobrimento da verdade com sentimentos aparentemente nobres, mas intrinsecamente vis. A invencionice caricata toma forma de discurso e a galhofa vira verdade, se transforma em verdade, mesmo não o sendo, e o palhaço ocupa o palco. Não para fazer rir, mas para rir-se da plateia.
A benevolência da promessa, ingênua na origem, se esquecia que o povo fora forjado no antigo texto, moldado pela dor e pela violência, educado pela truculência e pelo medo. É um processo muito lento e muito complicado fazer das mãos que agridem mãos que gesticulam.
E no primeiro momento em que foi possível as agressões vieram e se estabeleceram com uma força aniquiladora. Se o texto estava maduro ou não, esse era, de longe, um grande teste. Levada às últimas consequências, a dor imposta coloca diante de todos nós o paradoxo da robustez e da fragilidade da palavra. Ela contra ela mesma.
Muitos que presenciaram seus milagres se postaram ali, em pequenos cercos, todos dispostos a sacrificar a palavra em nome de um discurso, de um grito de guerra, de um aforismo ou de qualquer coisa que pudesse eliminar o temor de que a concretude da palavra pudesse causar. A ingenuidade do texto mostrava a sua fraqueza: a crença na benevolência humana, no altruísmo para com o seu igual e na vontade de construir um mundo melhor.
Com zombarias, disfarçadas de bom humor, a palavra que se fazia em carne, se esvaiu em sangue.
Aos solavancos, com um peso enorme sobre as costas, com o corpo dilacerado, sem a força necessária para se sustentar em pé sozinha, a palavra permanece a sua caminhada. Estramos agora no último trecho definidor desta longa e tortuosa caminhada, por onde tantas passaram e ficaram pelo caminho.
A morte aqui é a regra. A Via Ápia institucional é, por sua própria natureza, como bem nos ensinou Espártaco, sanguinária e não se agrada de questionamentos. Sobreviver ao percurso é, por si, um milagre. E é deste milagre que vigiamos desde agora, para que antes que se complete seu 34º aniversário saibamos qual a capacidade da palavra de se robustecer com a dor infligida por seus detratores.
Fizeram da dor que forjou a sua fortaleza um fundamento de guerra e de morte; usa-se a palavra contra a palavra; usa-se a palavra para apagar a palavra; há prazer na aniquilação daquilo que é fundante: o verbo. A dialética metafórica da linguagem viva é solapada pela rudeza da ignorância de quem, ao contrário da palavra, não conhece a plasticidade das parábolas que ensinam muito mais valores do que regras.
As regras… as regras são muitas e a sensibilidade é pouca. Há falsos Messias bradando defender os valores fundantes da palavra e, ao mesmo tempo, agindo para destroçar suas virtudes. Isso já estava previsto e seus mecanismos de controle e contenção existem exatamente para fazer frente a esses falsos profetas que usam da enganação para, a pretexto de proteger, espalhar a dúvida, a desesperança e a discórdia. Tudo por poder…
A via crucis começou na data prevista e tudo o quanto temos será testado como nunca antes, definindo destinos e o futuro.
Saberemos qual a sua capacidade de morrer e renascer para dar esperança ao povo de um futuro melhor, de levar a cada canto a boa nova de que temos esperança, de que temos a palavra que guia e orienta. Tenhamos esperança que até no culto da morte é possível saber que existe vida lutando para viver e fazer viver e que a esperança de fundar e fazer nascer, neste doloroso processo, um templo robusto de democracia, de igualdade e liberdade.
Se o percurso é doloroso, injusto e cruel, saibamos com ele aprender para não mais errar. E que a páscoa da nossa democracia seja tão luminosa e gigante quanto perene.