A imagem do profissional do Direito é a essência do apocalipse e precisa ser repensada para sobreviver.
São 15h de uma quarta-feira qualquer. Estou na minha casa correndo atrás do felino que será cruelmente preso no banheiro para não pular na frente do computador no curso do evento que se aproxima. Miados estridentes também são comuns e é importante evita-los, dado o volume de vídeos curiosos que andam circulando na internet.
Depois de algum desforço físico e um pouco de sorte, consigo capturar o felino e submetê-lo ao necessário cárcere – que me custará alguma reclamação e uns petiscos depois. Tudo dentro do esperado.
Descerro uma cortina da janela para evitar o reflexo solar. Ao contrário dos mais abonados, minha janela não tem a luz da manhã, mas a da tarde, aquela que frita a pele, cega os olhos e impede que qualquer imagem seja capturada com o mínimo de qualidade. Com algum ajuste o ambiente parece um pouco mais uniforme em termos de luminosidade. Eu que não sou especialista, julgo que está de bom tamanho.
Vou ao guarda roupa. Estou vestindo uma camisa polo, uma bermuda velha e chinelo de dedo. Pego uma camisa social, uma gravata e um paletó. Na frente do espelho a cena que foi freneticamente reproduzida na internet desde o início da pandemia: alguém de paletó, gravata, bermuda e chinelo.
Ao contrário da maioria, a cena não me agrada ou diverte. Só é chato e quente, muito quente. O que fazer? Hoje é dia de sustentação oral no Tribunal. E como manda o dever de ofício, é preciso se vestir “de forma compatível com a dignidade da profissão”.
Essa frase não é minha. Essa frase vinha no comunicado da data de entrega da carteira da OAB e era endereçada carinhosamente às mulheres. O texto era algo do tipo: homens de terno e gravata e mulheres em traje compatível com a dignidade da profissão. Já me esforcei para entender o que seria isso, mas confesso não ter tido muito sucesso. Ser mulher realmente deve ser um exercício muito complicado. Nem para pegar a carteira da OAB se tem paz.
Voltando à sustentação, sento na frente do computador e descubro que a minha câmera não funciona. É preciso improvisar com o celular encostado em um copinho que o apoia para dar altura. Meus livros estão acima dos meus olhos e não em uma prateleira atrás de mim. Ao fundo, apenas uma parede branca – o que deve eliminar qualquer possibilidade de eu me parecer com um intelectual. Quem sabe aquele banner de estante não ajude? Vou pensar a respeito.
A sessão demora, assim como ocorre em todas as sessões. Com o tempo, a gente descobre que o tempo do Direito não é o tempo do relógio. Corremos o tempo todo igual malucos para fazer as coisas devagar. É assim que funciona (e isso não é uma crítica). Chegou a minha vez: abro a câmera e estou lá aparecendo de terno e gravata na tela e brincando com o meu chinelo com o dedão do pé.
Todos os envolvidos estão igual e condignamente vestidos, como que em uma uniformização fabril necessária para caracterizar os operários (ou melhor operadores) do Direito. Gastei meus 15 minutos legais, consegui desenvolver um raciocínio muito razoável na minha concepção e, ao final, como é de praxe, tive a deferência de receber o “ouvi com atenção a sustentação do ilustre Advogado, mas os argumentos apresentados não alteraram o meu voto que já consta no sistema e, por isso, estou negando provimento ao recurso”. Minha vez de ser protocolar: “Obrigado Excelência, peço licença para me retirar da sessão”.
Para quem não sabe, a sustentação oral não é para o relator. Ele já tem o processo, o recurso e o voto dele. É para os outros que não tiveram acesso aos autos. A tentativa é capturar-lhes a atenção para a sua fala de modo a mostrar que o seu recurso é diferente dos milhares que aportam nos seus gabinetes todos os dias. Como a maioria das causas não é excepcional, é previsível que essa captura seja realmente complicada. Mas faz parte da atividade e ali estamos todos cumprindo os nossos papéis.
Antes eu era mais crítico com o Judiciário. Porém, uns anos atrás, depois de passar um curto tempo dentro do Judiciário, pude fazer aquele exercício de alteridade e olhar com o olho do outro. E a atividade é bem mais estafante do que se pode imaginar. Daí você se coloca no lugar da Desembargadora Presidente da Câmara assistindo um Advogado lendo a sua “sustentação” e o outro projetando tela de power point sem autorização. Em suma, a Advocacia não colabora muito… mas isso é papo para outra momento.
Fato é que a minha parte acabou e eu posso desligar a câmera, tirar o paletó, a gravata e a roupa social e retornar para a camisa polo – muito mais compatível com a bermuda e o chinelo que estão da cintura para baixo. Por um relance, lembro que o felino está enclausurado há cerca de 2h e a minha penalidade por isso será maior. Corro a socorrer, promovendo-lhe a liberdade. Daqui a algumas horas recebo algum sinal de perdão. É preciso paciência.

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Por um segundo não resisto e olho a temperatura do ambiente: 37ºC. Com o devido perdão a quem discordar, mas não há a menor possibilidade de ser feliz com 37ºC. Na verdade, qualquer coisa a partir de 29ºC ultrapassa o limite da compreensão e afeta a minha capacidade de raciocínio elementar.
Lembro, com alguma felicidade, que se o julgamento fosse presencial eu teria que vestir a camisa de manga longa, a gravata, o terno, a calça social e o sapato muitas horas antes. Teria que me deslocar vestindo essa tralha até o Tribunal e chegando lá teria de colocar uma beca por cima disso tudo!
Para os jovens, o Tribunal disponibiliza becas que ficam em pequenos cabides sob o púlpito de onde fala o Advogado. Só pode falar com a beca sobre o paletó. Os magistrados estão de toga – que é praticamente a mesma coisa, mas tem a cordinha branca (a do Advogado é vermelha).
Por fim, terminado o procedimento, ainda teria todo o caminho de volta para casa ainda com essas longas vestimentas que me fazem representar a dignidade da profissão. Concluo com algum alívio que o processo eletrônico tem grandes chances de se tornar permanente e que as possibilidades de fazer sustentações orais de bermuda e chinelo são mais robustas agora.
O ponto principal é: porque motivo eu preciso vestir terno e gravata para fazer uma sustentação oral, para realizar uma audiência ou para qualquer outro motivo. E o meu questionamento tem um fundamento muito simples: eu tenho verdadeiro horror ao terno e à gravata. É a coisa mais incômoda que existe na face da terra. Respeito quem goste, mas me atrapalha a raciocinar.
Esta vestimenta talar é oriunda do medievo e institucionalizada pela Igreja Católica para destacar os clérigos dos demais “mortais”. Referido costume foi transportado para os ambientes acadêmicos, também instituído inicialmente pela igreja, de modo a destacar a figura do reitor (cujo pronome de tratamento é “magnífico” e torna qualquer cerimônia acadêmica um exercício hercúleo de contenção de risos, dado que um reitor, de regra, pode parecer qualquer coisa menos magnífico).
Não precisa gastar muito fosfato para presumir que este hábito foi transportado para o Judiciário. Vestimenta talar se refere ao latim talus que nada mais é do que o calcanhar. Ou seja, é aquele vestidão que vai até o pé. E a beca e a toga fazem exatamente este papel e aquele que interessa simbolicamente: separa quem é habilitado a vestir o vestidão e quem não é.
O terno tem o mesmo objetivo. Observe que se trata de uma prática sociológica de simbolismo muito evidente. Observe qualquer imagem que se proponha a retratar a nobreza e a pobreza medieval, moderna e contemporânea. A vestimenta é um item fundamental para realizar a separação de quem frequenta a corte daqueles vivem na vala. O traje faz parte de um imaginário de poder e de status necessário para separar aqueles que são daqueles que não são.
Hoje, quase sem cabelos, eu sou chamado de “moço” na rua. E te garanto, se você já é chamado de moço na rua, de agora em diante é só ladeira abaixo. Mas quando eu me formei em Direito, no alto dos meus 22 anos, eu era chamado de “senhor” quando estava de terno e de “menino” quando estava de calça jeans. A testa franzida era sempre a mesma, mas o fenótipo sociológico era substancialmente diferente.
Até aí tudo bem… isso é história para contar e vira caso para rir. O que me importa é que essa estrutura foi construída em um momento muito estamental da sociedade (que hoje é combatido, apesar de ainda existente) e em sociedades que conviviam com o frio da morte! Aí pegam esse negócio e trazem para terras tupiniquins, onde locais como Belo Horizonte, considerados de clima temperado, convivem com termômetros a 37ºC!
É, no mínimo, muita falta de amor ao próximo achar que é normal derreter o pouco de líquido que me resta no organismo em roupas que cobrem todo o corpo (com mais de uma camada!) somente para conseguir me deslocar do estacionamento até o Tribunal. Na chegada do percurso eu já perdi a tese que ia sustentar e todas as células do meu corpo só estão ocupadas em garantir a minha sobrevivência – que é colocada severamente à prova. Tentando ser sóbrio sobre o tema, eu tenho verdadeira curiosidade para entender como fazem nossos colegas do Tocantins submetidos a este tipo de violência diária.
Quando ando nas ruas de acesso ao Fórum ou Tribunal, a única imagem que me vem à mente é a de um amontoado de advogados andando pelas ruas e derretendo dentro de ternos, caminhando meio de lado e emitindo sons guturais enquanto sua estrutura fibrosa vai ficando exposta à radiação solar. É um misto de Resident Evil com Teletubbies, onde absolutamente nada faz sentido, mas todo mundo repete porque na realidade ninguém está entendendo bem o que está acontecendo.
Tudo fica ainda mais surreal quando conciliamos esse quadro à la René Magritte com a multiplicação de advogados blogueiros, TikTokers e descoladinhos (seja lá o que isso quer dizer). É como exigir que o Novak Djokovic dance o Haka antes de começar as suas disputas! Seria então um bom momento para repensarmos o lugar e a necessidade das vestes talares, do terno, da gravata, da roupa social e de qualquer coisa que queiram fazer as mulheres acreditarem que estão vestidas de acordo com a dignidade da profissão.
Vivemos um momento de horizontalização e humanização das relações (principalmente as relações de poder!). É preciso estar mais próximo da realidade do outro, criando pontes comunicacionais e não barreiras. O Poder Judiciário tem se empenhado tanto em promover conciliações e soluções consensuadas dos conflitos, mas não percebe que a estrutura em si é opressiva e segregacional.
Seria um bom momento de o Judiciário, junto com a Advocacia (o MP não precisa, pois eles gostam de ser os diferentões), propor uma mudança cultural para tornar a nossa atividade mais próxima, mais leve e menos calorenta. Vivemos nos trópicos, nossos cidadãos se vestem de forma tropical para sobreviver. E mais do que isso, nós nascemos aqui.
E não é negando a nossa realidade, negando a gênese que temos, que seremos capazes de superar as nossas mazelas. Não é se “fantasiando” de algo que não somos que vamos alinhar a nossa rota com o propósito constitucional de erradicação de qualquer tipo de discriminação. Se não pararmos para pensar sobre isso, muito em breve estaremos todos “pagando mico” sem perceber (ainda que dar dinheiro a um primata não pareça uma ideia muito inteligente).
Isso não tira a autoridade do Judiciário, não menospreza a capacidade da Advocacia e muito menos afeta a imagem dos operadores do direito. Afinal, para além da nomenclatura, somos operários como quaisquer outros operários nestas terras. E é bom que seja assim. Manufaturamos costuras de vidas, patrimônios e personalidades. É preciso, pois, investir mais em boas agulhas do que em bons uniformes.
A minha higidez epitelial agradece bastante, mas acredito que a sociedade agradece ainda mais.